A Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão (PFDC), órgão vinculado ao Ministério Público Federal (MPF), apresentou uma contundente manifestação contrária ao projeto de lei que almeja proibir a união civil entre pessoas do mesmo sexo no Brasil. A PFDC considerou não apenas que a proposta é inconstitucional, mas também que ela vai de encontro a princípios internacionais e representa um retrocesso no que diz respeito aos direitos e garantias fundamentais das pessoas LGBTQIA+.
Este projeto de lei atualmente está em processo de tramitação na Câmara dos Deputados. Em uma nota pública encaminhada à Casa na sexta-feira (22), a PFDC argumentou que negar o reconhecimento da união civil homoafetiva implicaria em conceder menos direitos aos homossexuais em comparação aos heterossexuais, criando, assim, uma hierarquia de direitos com base na orientação sexual.
A procuradoria alegou que tal entendimento violaria princípios constitucionais, como o da dignidade humana e a proibição de qualquer forma de discriminação. A nota também enfatizou que essa abordagem entraria em conflito direto com a essência da Constituição da República Federativa do Brasil, que busca estabelecer uma nação onde a convivência entre grupos diversos seja pacífica e harmoniosa.
A PFDC destacou ainda que a aprovação desse projeto não apenas indicaria que o Estado reconhece apenas o casamento heterossexual como correto, mas também implicaria em um reconhecimento de pessoas não heteronormativas como cidadãs de segunda classe, privadas de pleno exercício de seus direitos devido à sua orientação sexual.
Os dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) foram citados pela PFDC para ressaltar a importância da união civil homoafetiva. Apenas em 2021, 9,2 mil casais do mesmo sexo formalizaram sua união estável em cartório. Caso o projeto se torne lei, a PFDC alerta que novas uniões estarão impedidas ou não produzirão os efeitos legais desejados, criando um desequilíbrio injustificável entre pessoas homo e heterossexuais.
Além disso, a procuradoria argumentou que a união civil é um ato voluntário e privado, cujo propósito é estabelecer uma parceria entre duas pessoas para compartilhar suas vidas. A orientação sexual das partes envolvidas não deveria ter relevância nesse contexto, especialmente em um Estado democrático que protege as liberdades fundamentais dos indivíduos.
A PFDC também enfatizou que o projeto busca limitar o direito de escolha dos indivíduos, uma questão que pertence à esfera privada.
A votação do Projeto de Lei 5.167/2009 estava prevista para o dia 19 na Comissão de Previdência, Assistência Social, Infância, Adolescência e Família da Câmara dos Deputados, mas foi adiada para a próxima quarta-feira (27). Conforme o acordo entre as lideranças partidárias, a comissão realizará uma audiência pública na terça-feira (26) para debater o tema antes da votação.
É importante destacar que em 2011, o Supremo Tribunal Federal (STF) equiparou as relações entre pessoas do mesmo sexo às uniões estáveis entre homens e mulheres, reconhecendo a união homoafetiva como um núcleo familiar. Esta decisão foi tomada durante o julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade 4277 e da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 132.
Além disso, o STF determinou que a Constituição não estabelece um conceito fechado ou restritivo de família, nem requer formalidades específicas para sua configuração. Em 2013, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) ordenou que todos os cartórios do país realizassem casamentos homoafetivos.
A procuradoria observou que a decisão do STF buscou assegurar a igualdade de tratamento entre casais heterossexuais e homoafetivos, permitindo que cônjuges homossexuais estabelecessem uma união civil reconhecida pelo Estado, conferindo-lhes direitos como herança, planos de saúde compartilhados e benefícios previdenciários, já concedidos aos cônjuges heterossexuais.
O projeto atualmente em discussão na Câmara dos Deputados, de autoria do deputado Pastor Eurico (PL-PE), visa inserir no Artigo 1.521 do Código Civil um trecho que estabelece: “Nos termos constitucionais, nenhuma relação entre pessoas do mesmo sexo pode equiparar-se ao casamento ou à entidade familiar”. O Artigo 1.521 atualmente lista os casos em que o casamento não é permitido, incluindo uniões entre pais e filhos ou entre pessoas já casadas.
Na justificativa, o relator argumenta que o casamento “representa uma realidade objetiva e atemporal, que tem como ponto de partida e finalidade a procriação, o que exclui a união entre pessoas do mesmo sexo”.
A PFDC rebateu essa argumentação, afirmando que o projeto relativiza a laicidade do Estado brasileiro, ao fundamentar-se em premissas de uma visão cristã do casamento como uma instituição voltada para a procriação. A procuradoria salientou que impor uma visão religiosa sobre escolhas pessoais nos levaria em direção a um regime teocrático ou ao totalitarismo, retrocedendo vários séculos no tempo.
O deputado Pastor Eurico argumentou que o STF teria ultrapassado a competência do Congresso Nacional ao reconhecer a união homoafetiva. A PFDC, por sua vez, refutou esse argumento, afirmando que a Suprema Corte exercera sua competência interpretativa do direito ao estabelecer que a menção explícita a homem e mulher na Constituição de 1988 refletia o propósito de garantir igualdade de direitos entre as partes do casal.
Caso o projeto seja aprovado na Comissão de Previdência, Assistência Social, Infância, Adolescência e Família, ele seguirá para a Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) com caráter conclusivo, o que significa que não precisaria passar pelo plenário da Câmara em caso de nova aprovação, indo diretamente para a análise do Senado. A votação em plenário só ocorreria se pelo menos 52 deputados assinassem um recurso nesse sentido.
No entanto, a perspectiva na CCJ é menos favorável do que na comissão anterior, uma vez que é presidida por Rui Falcão (PT-SP), membro da base governista e opositor ao projeto. A decisão sobre quais projetos entrarão na pauta da CCJ cabe ao seu presidente.