31 de Julho de 2019
Tatiane, 29 anos, foi jogada do quarto andar pelo marido após ser cruelmente espancada. Mônica, 22 anos, foi alvejada com um tiro no rosto porque não quis mostrar o celular para o namorado. Whailly, 24 anos, recebeu 13 facadas do ex-namorado porque não quis reatar a relação. Leia, 32 anos, foi esfaqueada pelo ex-marido diante do filho de dois anos. Dineia, 35 anos, foi estrangulada pelo ex-namorado, que não aceitou o fim do relacionamento. Dineia terminou a relação porque descobriu que ele tinha matado a primeira mulher.
Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), 38% dos assassinatos cometidos contra as mulheres em todo o mundo foram executados por seus companheiros e 42% das mulheres que sofreram violência doméstica apresentam sequelas físicas ou mentais. Para a organização, a violência contra as mulheres é “um problema de saúde mundial de proporções epidêmicas”.
Só em 2017 foram registrados 2.795 feminicídios na América Latina, de acordo com um relatório da Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal). Em termos absolutos, o Brasil lidera esta terrível lista, com 1.133 vítimas confirmadas.
“O feminicídio é a expressão mais extrema da violência contra as mulheres”, declarou a secretária-executiva da Cepal, Alícia Bárcena, na apresentação do relatório.
O Mapa da Violência de 2015, publicado pela Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais (Flacso), revelou que cerca de 13 mulheres são assassinadas por dia no Brasil. Segundo o estudo, 50,3% das mortes violentas são cometidas por familiares e 33,2% por parceiros ou ex-parceiros. O documento ainda aponta um aumento de 54% em dez anos no número de homicídios de mulheres negras, relevando uma terrível combinação entre racismo e machismo.
Em nota divulgada pela ONU Mulheres, a representante deste organismo no Brasil, Nadine Gasman, declarou que “é urgente criar consciência pública de não tolerância ao racismo e acelerar respostas institucionais concretas em favor das mulheres negras”.
A PROPRIEDADE DA PROPRIEDADE
A historiadora Juliana Bezerra apontou a sombra da escravidão como a principal explicação para esses alarmantes dados de violência contra as mulheres negras. “O peso da escravidão influencia todas as relações sociais no Brasil”, declarou em entrevista à Agência Efe.
“A mulher era considerada como uma propriedade do pai e, posteriormente, do marido. E a escrava era a propriedade da propriedade”, explicou Juliana, que é mestre em História da América Latina pela Universidade de Alcalá de Henares, na Espanha.
Apesar da violência afetar mulheres de todas as raças e classes sociais, a historiadora acredita que o espaço relegado ao negro no Brasil, após a escravidão, deixa a mulher negra em uma posição de inferioridade e, portanto, mais vulnerável a sofrer todo o tipo de violência.
A TRADIÇÃO MACHISTA
A violência contra a mulher não é algo novo, ela sempre existiu. O que é novo é a preocupação por sua eliminação como um passo essencial para a construção de um mundo civilizado. De acordo com a ONU Mulheres, esse tipo de violência é “uma construção social, resultado da desigualdade de força nas relações de poder entre homens e mulheres. Ela é criada nas relações sociais e reproduzida pela sociedade”.
Na primeira história em quadrinhos do Super-Homem, de 1938, uma das aventuras do personagem foi salvar uma mulher que estava sendo espancada pelo marido. Após anos de luta pela igualdade de direitos, as mulheres deixaram claro que não precisam de um super-herói que as resgate, mas sim de um conjunto de leis e instituições que defendam seu direito à vida e apaguem a mancha de uma cultura machista na qual o homem vê a mulher como uma propriedade e utiliza sua superioridade física para dominá-la.
MARIA DA PENHA
No Brasil, o primeiro grande passo legal para combater a violência contra a mulher foi a Lei Maria da Penha. Sancionada pelo ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva em 2006, a lei é considerada pela ONU como uma das três melhores legislações do mundo para combater à violência contra as mulheres.
De acordo com um estudo de 2015 do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), a lei reduziu em 10% a projeção de aumento da taxa de homicídios domésticos contra mulheres.
A origem do nome é uma homenagem a uma biofarmacêutica cearense que sofreu um verdadeiro calvário em mãos de seu então marido. Em 1983 ele tentou matá-la duas vezes. Na primeira vez com um tiro de espingarda, que a deixou paraplégica. Na segunda tentou eletrocutá-la enquanto ela tomava banho. Quando finalmente decidiu denunciar seu agressor, Maria da Penha se deparou com um sistema que protege o agressor e deixa a mulher quase sempre desamparada. Em sua luta para conseguir justiça, ela lançou o livro “Sobrevivi… posso contar” (editora: Armazém da Cultura), onde narra a violência que sofreu. Em 1998 seu caso chegou à Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) da Organização dos Estados Americanos (OEA), que recomendou “condenação imediata do agressor e a mudança da legislação no país”.
“Eu garanti uma vida sem violência para muitas mulheres, principalmente para as minhas filhas. Com a minha luta, elas têm hoje certas garantias”, afirmou Maria da Penha, hoje com 74 anos, em entrevista à Agência Efe.
LEI DO FEMINICÍDIO
O segundo grande passo legal dado pelo Brasil para evitar a violência contra as mulheres foi a Lei do Feminicídio. Sancionada pela presidenta Dilma Rousseff em 2015, a lei alterou o código penal brasileiro para prever o feminicídio como um tipo de crime hediondo diferenciado de um homicídio comum.
“O feminicídio é a última instância de controle da mulher pelo homem: o controle da vida e da morte”, diz o relatório da Comissão Parlamentar Mista de Inquérito sobre a Violência contra a Mulher.
A palavra feminicídio foi importada do inglês no contexto da luta feminista e é utilizada para definir o assassinato de uma mulher pelo fato dela ser mulher. Na lei, o feminicídio é um agravante do crime de homicídio, uma circunstância especial que transforma o ato em homicídio qualificado. O feminicídio também é considerado uma forma extrema de machismo e misoginia.
De acordo com a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), entre janeiro e fevereiro deste ano foram contabilizados 126 feminicídios no Brasil e 67 tentativas de assassinato de mulheres por motivo de gênero. A CIDH observou que, na maioria dos casos, “as mulheres assassinadas haviam denunciado anteriormente seus agressores, enfrentado graves incidentes de violência doméstica ou sofrido ataques e tentativas de homicídio anteriores”. Apesar de admitir que a aprovação da lei do feminicídio “representou um passo fundamental”, a comissão afirmou que é “indispensável reforçar as medidas de prevenção e proteção”.
O EXEMPLO ESPANHOL
Um dos países pioneiros na implantação de normas para erradicar este tipo de violência foi a Espanha. A Lei Integral contra a Violência de Gênero foi aprovada pelo congresso espanhol em 2004 por unanimidade. “A lei não só contém medidas para proteger as mulheres e castigar os agressores, mas também para mudar o paradigma social que perpetua a desigualdade entre homens e mulheres”, disse Yolanda Besteiro de la Fuente, presidenta da Federação de Mulheres Progressistas (FMP) da Espanha.
“A lei mudou este paradigma ao considerar que a violência de gênero não é uma questão privada, mas sim um problema público”, destacou.
Neste sentido, Yolanda explicou que a lei prevê medidas educativas dirigidas a alunos e professores desde o pré-escolar até a universidade e uma série de normas para os meios de comunicação e agências de publicidade sobre a utilização da imagem feminina. O objetivo é evitar que a mulher seja mostrada como um objeto ou colocada em uma posição inferior ao homem.
Além disso, a lei permitiu o surgimento de diversos recursos para amparar as vítimas, como o centros de emergência e as casas de acolhimento. Além de uma ajuda econômica para que a vítima possa abandonar a casa que compartilha com o agressor e começar uma nova vida.
A presidenta da FMP também explicou que foram criados tribunais especializados e que condutas como ameaças, agressões leves e coações, que eram consideradas infrações leves, passaram a ser delitos.
“O maior problema enfrentado pela lei é a resistência ideológica de alguns funcionários públicos na hora de aplicá-la”, lamentou Yolanda.
O argumento mais utilizado para criticar a legislação são as supostas denúncias falsas feitas por mulheres para atacar ou chantagear seus parceiros. No entanto, segundo o Ministério Público espanhol, apenas 0,01% das denúncias são falsas. O órgão divulgou esta estimativa após um levantamento das denúncias feitas entre 2009 e 2016.
Um dos maiores críticos da lei na Espanha é um partido de extrema-direita chamado Vox, que prometeu revogá-la caso chegasse ao poder. “Eles defendem um tipo de sociedade onde há uma divisão tradicional de tarefas e desigualdade de direitos, na qual o homem é responsável por manter a casa e a mulher deve cuidar da família”, explicou Yolanda.
FEMINISMO X EXTREMA-DIREITA
Em entrevista à Agência Efe, a cientista política Gabriela Brochner declarou que “a extrema-direita está pautada por valores conservadores que não permitem a emancipação e que não classificam todos os humanos e humanas como iguais, pois seu entendimento de poder está focado na submissão”.
No caso do Brasil, quando ainda era candidato, o presidente Jair Bolsonaro sofreu uma forte oposição liderada pelas mulheres, que se manifestaram nas ruas de diversas cidades do país com o lema #elenão. Ao longo de sua carreira política, o atual presidente fez diversas declarações polêmicas sobre as mulheres e foi taxado de machista e misógino. “Bolsonaro, desde um princípio, se mostrou como um candidato conservador e ao mesmo tempo neoliberal. As mulheres sabem que elas são as principais vítimas dessa combinação”, declarou Gabriela.
No entanto, apesar das massivas manifestações lideradas pelo movimento #elenão, Bolsonaro obteve mais votos de mulheres, ainda que a margem seja pequena, do que seu opositor Fernando Haddad.
A brasileira, doutora em Ciências Políticas pela Universidade Complutense de Madri, acredita que o presidente representa um risco de perda de direitos para as mulheres e que suas primeiras medidas já demonstram isso. “A flexibilização do uso de armas pode ocasionar um aumento de feminicídios, cuja taxa já é alta no Brasil. Na reforma da lei da previdência as mulheres são as mais prejudicadas”, explicou.
De acordo com Gabriela, o feminismo é atualmente a principal força política que combate as diferentes formas de opressão. “O movimento feminista questiona as relações de poder em diversos âmbitos, questiona a separação do público e do privado, e por isso representa uma ameaça à extrema-direita”.
“Bolsonaro desprezou a mulher a partir do momento em que definiu sua própria filha como uma fraquejada”, concluiu a cientista política.
CENTRAL DE ATENDIMENTO À MULHER
Desde 2005 existe um serviço de utilidade pública oferecido pelo Ministério dos Direitos Humanos para qualquer pessoa que queira fazer uma denúncia relacionada à violência contra a mulher. A Central de Atendimento à Mulher – Ligue 180 é um serviço humanizado que funciona todos os dias da semana, 24 horas por dia, incluindo feriados e fins de semana. Além de receber e encaminhar as denúncias, o Ligue 180 oferece informação sobre as leis Maria da Penha e do Feminicídio, e sobre os direitos da mulher. A ligação é gratuita e confidencial.
Carla Guimarães