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Eutanásia nos tempos bíblicos e hoje. A vida de um médico especialista em eutanásia

‘Não sinto que estou matando o paciente’

Redação BBC – News Mundo – com adptação ‘bíblicas’ – Saúde & Direitos Sociais

02 de Julho de 2019

O Último Pedido de Saul 
I Samuel 31 (31:4-6)

“Então, disse Saul ao seu escudeiro: Arranca a tua espada e atravessa-me com ela, para que, porventura, não venham estes incircuncisos, e me traspassem, e escarneçam de mim. Porém o seu escudeiro não o quis, porque temia muito; então, Saul tomou da espada e se lançou sobre ela. Vendo, pois, o seu escudeiro que Saul já era morto, também ele se lançou sobre a sua espada e morreu com ele. Morreu, pois, Saul, e seus três filhos, e o seu escudeiro, e também todos os seus homens foram mortos naquele dia com ele.”
O pedido de Saul enquadra-se em eutanásia.

Abimeleque faz o mesmo pedido

Após ter sido golpeado na cabeça por uma pedra de moinho e estando mortalmente ferido e sabe que está morrendo. Para evitar o estigma de ter sido morto por uma mulher, ele ordena a seu escudeiro que desembainhe sua espada e o mate. O jovem faz o serviço para Abimeleque, e ele morre.
O pedido de Abimeleque enquadra-se em eutanásia.

Mais de 100 eutanásias e diz que os procedimentos lhe causam grande impacto pessoal e emocional



O médico Yves de Locht já realizou mais de 100 eutanásias e diz que os procedimentos lhe causam grande impacto pessoal e emocional

“Injetamos isso nas veias do paciente e, em menos de um minuto, ele se vai, cai adormecido e depois morre. Sem sofrimento, sem dor,” diz o doutor Yves de Locht, enquanto segura entre os dedos um pequeno frasco com um líquido.

De Locht realiza eutanásias na Bélgica, país com uma das políticas mais liberais sobre o tema.

A eutanásia ativa, ou morte assistida por intervenção deliberada, é legal no país e em apenas alguns outros: Holanda, Luxemburgo, Canadá e Colômbia, enquanto alguns estados dos Estados Unidos permitem certos tipos de morte assistida.

Na Bélgica, o procedimento foi legalizado em 2002 e, em média, é aplicado a seis pessoas por dia. No ano passado, médicos belgas puseram fim a 2.357 vidas com a eutanásia.

O doutor Locht – que realizou mais de 100 eutanásias – recebe constantemente pedidos de pacientes que querem morrer.

Mas por motivos pessoais e emocionais, ele diz que só pode fazer uma por mês.

“É um ato importante e difícil que tem um grande impacto emocional”, admite. “Eu não chamo de matar um paciente. Ele encurtou sua agonia, seu sofrimento. Eu lhe forneço o cuidado final.”

A BBC acompanhou o médico durante os atendimentos a três pacientes que pediram sua intervenção.

Alain: ‘Quando perder a capacidade de me comunicar e me movimentar’



Alain saiu da França com os filhos para o consultório do doutor Locht. A eutanásia seria opção, mas ele morreu antes com complicações

Alain tem Esclerose Lateral Amiotrófica (ELA), uma condição que enfraquece todos os músculos gradualmente.

Em média, os pacientes com ELA morrem entre três e cinco anos após serem diagnosticados. Cerca de 25%, segundo o Ministério da Saúde do Brasil, sobrevivem por mais de cinco anos depois do diagnóstico.

Ele viajou 700 quilômetros com os dois filhos – saindo da França, onde a eutanásia é ilegal – para conseguir que o ajudem a encerrar a própria vida quando sua situação piorar.

A chegada ao consultório é de ambulância, a única maneira em que Alain poderia ser transportado, diz De Locht.

O médico quer ter certeza de que o pedido é feito pela vontade do paciente e pergunta sobre quando ele vai tomar a decisão.

“Eu acho que quando perder a capacidade de me comunicar e me mover”, responde Alain.

De Locht explica a ele que a intervenção será feita em um pequeno quarto do hospital onde poderão estar um ou dois membros da família.

Cabe a Alain decidir se quer que os filhos o acompanhem em suas últimas horas, mas eles também têm a opção de querer ou não estar presentes.



Alain poderia ser acompanhado pelos filhos no momento da eutanásia, se assim ele e os filhos desejassem

Segundo o médico, Alain cumpre as três condições básicas para pedir a eutanásia: “Ele tem uma doença incurável e um sofrimento que não pode ser aliviado”, diz ele, e “fez uma solicitação por escrito. Tenho o documento aqui”.

Alain voltou para casa com a esperança de poder pedir a eutanásia a qualquer momento. No entanto, ele morreu pouco depois, em fevereiro, de complicações respiratórias.

“Devemos aceitar que não podemos curar tudo”, diz o o doutor De Locht à BBC. “Quando não podemos curar, nosso papel é tentar aliviar o paciente, atenuar sua dor. Então, quando chego até o final continuo fazendo meu trabalho como médico.”

Louise: ‘Eu não quero acabar em um lugar com cheiro de urina’



Louise diz ter tomado a decisão ‘para ter uma morte digna’

Louise tem 79 anos e está em bom estado de saúde. Ela é paciente do doutor De Locht e, embora a eutanásia não esteja “na agenda” imediata, ela quer ter certeza de que a opção estará disponível caso seja necessária.

“Eu acho que você tem de enfrentar a morte e, se puder, esperá-la de pé”, diz. “É algo que afeta a todos nós, porque todos nós vamos morrer, mas eu tenho o direito de exigir qualidade ao final da minha vida.”

Louise argumenta que a eutanásia é uma maneira mais humana e mais eficiente de acabar com a vida. “Eu não quero acabar em um lugar com cheiro de urina”, exclama.

Ela sabe, no entanto, que por ora sua solicitação será negada.




Há alguns anos, o dr. De Locht mantém um registro com as histórias de seus pacientes

Michel: ‘Não é o câncer que me leva, sou eu quem decide’



Michel estava ‘absolutamente decidido’ a seguir adiante com o procedimento, mas sua mulher gostaria de ter mais tempo com ele

Uma noite antes de fazer a eutanásia, o doutor De Locht visita o paciente, Michel, que espera com sua esposa.

Michel, de 82 anos, é ex-chefe de polícia e tem câncer terminal na mandíbula. Ele tem se alimentado por meio de um tubo gástrico há quase um ano.

De Locht o cumprimenta e pergunta se ele mudou de ideia.

“Não há perigo (de mudança de ideia)”, responde Michel com a voz rouca.

Ele diz que depois de se consultar com o médico em Bruxelas pela primeira vez, sentiu como se tivesse retirado o peso que sentia nos ombros. “Isso me transformou. Eu pensei que finalmente havia uma saída.”

Sua dor é tão insuportável que ele passou a pensar em suicídio, mas não deu o passo final porque queria partir “com dignidade”.

Para sua mulher Isabelle, tem sido difícil aceitar isso e ela sente que seria melhor esperar.

“No início ele me disse: ‘Eu vou lutar até o fim, vou fazer todo o esforço para tentar melhorar'”, diz Isabelle, mas ela reconhece que nenhum dos intensos tratamentos a que foi submetido funcionou.

“Chegou o momento de ele acabar com a própria vida, porque já não é mais a sua vida”, diz ela, com resignação. “Ele me disse: ‘Eu me sinto como um cachorro amarrado’. É um pouco desumano.”



O médico Yves de Locht, depois de fazer a eutanásia de Michel, um de seus pacientes, diz que ficou impactado com o caso

Michel estava satisfeito por ter deixado tudo em ordem para a família antes de partir. “Não é o câncer que me leva, sou eu quem decide.”

Às 10 horas da manhã de 23 de abril, depois de passar a noite acordado com a mulher e os filhos, ele morreu em paz.

Foi um momento de recolhimento para o doutor De Locht.

“A imagem da mulher e dos filhos dele chorando vai continuar comigo por uns dias. É algo que realmente me impacta agora.”