Erika Hilton e o visto americano: quem deve revistar mulheres trans, um policial homem ou mulher?

© Lula Marques/Agência Brasil

Após ser classificada como homem pelos EUA, deputada trans reacende debate sobre identidade de gênero e segurança pública: revista deve seguir o gênero legal ou o biológico?

Ivan Rocha @ivanrocha

O caso da deputada federal Erika Hilton (PSOL), que teve seu gênero alterado para masculino no visto de entrada nos Estados Unidos, escancarou uma realidade vivida cotidianamente por mulheres trans: quem tem o direito de tocar seus corpos em situações de revista policial?

Mesmo reconhecida como mulher pelo Estado brasileiro, Erika foi classificada como do sexo masculino pelas autoridades norte-americanas, com base em diretrizes da nova gestão Donald Trump. A mudança no documento levou a parlamentar a cancelar sua participação na Brazil Conference at Harvard & MIT 2025, onde representaria oficialmente a Câmara dos Deputados.

O episódio vai além da diplomacia: atinge o cerne da dignidade humana. No Brasil e no mundo, mulheres trans são frequentemente revistadas por policiais homens, desconsiderando sua identidade de gênero e seus documentos civis. Em muitos casos, essa conduta se torna uma forma de violência institucional — uma tentativa de impor, à força, uma “verdade biológica” que nega sua existência.

Leia também: ‘As mulheres de verdade venceram. E as ‘mulheres trans’ são homens. Finalmente, a lei esclareceu isso

A pergunta que fica é: o que deve prevalecer? A certidão retificada ou o sexo atribuído no nascimento? A identidade reconhecida pelo Estado ou a anatomia?

A especialista em relações internacionais e psicóloga, Daiane Fragoso, falou sobre a situação com o portal S&DS.

Segundo Fragoso, a prática de revistar pessoas trans por policiais do sexo oposto a sua identidade é desumana. E, pior, institucionaliza a transfobia sob o verniz da “ordem” e do “procedimento”.

“Se até uma parlamentar brasileira é desrespeitada por um governo estrangeiro, o que esperar para as mulheres trans que enfrentam a polícia na periferia, sem câmeras nem holofotes?”, ressaltou. 

O que aconteceu com Erika Hilton seria espelho de uma sociedade que ainda quer controlar quem são a partir de suas genitália? Mas identidade de gênero não é algo que se revê numa revista. 

Se o documento oficial do Brasil diz que é mulher, a abordagem também deve dizer? E o Estado, seja brasileiro ou americano, precisa aprender a seguir essa regra ou impor o tratamento em razão de genitália? 

Em nota, a embaixada dos EUA informou que os registros de visto são confidenciais e confirmou que só reconhece os sexos masculino e feminino. 

“A embaixada dos Estados Unidos informa que os registros de visto são confidenciais conforme a lei americana e, por política, não comentamos casos individuais. Ressaltamos também que, de acordo com a Ordem Executiva 14168, é política dos EUA reconhecer dois sexos, masculino e feminino, considerados imutáveis desde o nascimento”.

A Ordem Executiva 14168, assinada por Donald Trump em 20 de janeiro, determina que os departamentos federais dos EUA reconheçam apenas o gênero binário — masculino ou feminino — como imutável, proibindo a autoidentificação de gênero em documentos oficiais, como passaportes.

US Nova Ordem Executiva dos EUA reconhece apenas dois sexos biológicos

Data da ordem: 20 de janeiro de 2025
Emitida pela Presidência dos Estados Unidos


Objetivo da ordem

  • Reafirmar a distinção biológica entre homens e mulheres.

  • Combater o uso de linguagem e políticas baseadas na identidade de gênero.

  • Restaurar políticas e proteções federais com base exclusivamente no sexo biológico.


Definições oficiais

A partir desta ordem, os seguintes termos passam a ter definições legais específicas nos EUA:

  • Sexo: Imutável, definido biologicamente como masculino ou feminino.

  • Mulher/Menina: Pessoa do sexo feminino desde a concepção.

  • Homem/Menino: Pessoa do sexo masculino desde a concepção.

  • Ideologia de gênero: Rejeitada como substituto válido do sexo biológico.

  • Identidade de gênero: Considerada subjetiva e sem base científica para políticas públicas.


Aplicação nos órgãos federais

  • Todas as agências federais devem usar “sexo” (e não “gênero”) em documentos, diretrizes e regulamentos.

  • Documentos oficiais (passaportes, registros, etc.) devem refletir apenas o sexo biológico.

  • Formulários devem conter apenas as opções: masculino ou feminino.

  • Suspensão de verbas: Fica proibido o financiamento federal de iniciativas que promovam ideologia de gênero.


Reinterpretação da Lei Bostock v. Clayton County (2020)

  • A decisão da Suprema Corte não poderá mais ser usada para permitir acesso a espaços femininos com base na identidade de gênero.

  • O Procurador-Geral emitirá novas orientações para corrigir a aplicação errônea dessa decisão.


Proteção de espaços íntimos

  • Homens não poderão ser detidos em prisões femininas.

  • Alojamentos e abrigos voltam a ser exclusivos por sexo biológico.

  • Proibição de uso de verbas federais para tratamentos hormonais ou cirurgias de redesignação de gênero em detentos.

  • Espaços íntimos, como banheiros, vestiários e alojamentos, deverão seguir distinções por sexo, não por identidade de gênero.


Garantia de direitos

  • Direito à liberdade de expressão sobre a natureza binária do sexo será garantido.

  • Espaços exclusivos por sexo em locais de trabalho e instituições com verba federal serão protegidos por lei.

  • Ações prioritárias de investigação e litígio para garantir esses direitos.


Projeto de Lei

  • No prazo de 30 dias, a Casa Branca apresentará um projeto de lei ao Congresso para codificar essas definições em lei federal.


Revisão e implementação

  • Prazo de 120 dias para as agências revisarem documentos, políticas e formulários.

  • Ordens Executivas anteriores, como as de 2021 e 2022 sobre identidade de gênero, foram revogadas.

  • O Conselho de Política de Gênero da Casa Branca foi dissolvido.


Documentos e guias revogados

Diversos documentos pró-direitos LGBTQI+ foram revogados, incluindo:

  • Guias do Departamento de Educação sobre apoio a alunos transgêneros e intersexo.

  • Materiais da Casa Branca como o “Kit de Ferramentas sobre Igualdade Transgênero”.

  • Guias da Comissão de Igualdade de Oportunidades sobre assédio e identidade de gênero.


Disposições gerais

  • Ordem será aplicada conforme a legislação vigente e disponibilidade de recursos.

  • Não cria novos direitos ou benefícios legais individuais.

  • Caso alguma parte seja invalidada judicialmente, o restante da ordem permanece em vigor.