Opinião | Ética na saúde não é conteúdo digital: o caso Vitória e o limite entre o saber e o respeito

Gabrielli Farias de Souza e Thaís Caldeiras Soares Foffano - Juramento de Hipócrates ou de hipócritas?
Foto: arquivo pessoal do segundo transplante de 2016.

O caso da jovem Vitória Chaves da Silva, de 26 anos, que lutou contra uma grave cardiopatia congênita e faleceu após o terceiro transplante de coração, escancarou mais uma vez os riscos do mau uso das redes sociais por parte de futuros profissionais da saúde. Duas estudantes de medicina, após estágio no Instituto do Coração [Incor], em São Paulo, gravaram um vídeo no TikTok em que expunham o histórico clínico da paciente — com ironias, juízos e desinformação — sem autorização da família ou qualquer respaldo ético.

Não é exagero afirmar que esse episódio representa uma falha coletiva. De formação, de consciência, de empatia. Também não se trata apenas de um deslize juvenil. É um sinal de alerta: a ética na saúde precisa ser ensinada, reforçada e, sobretudo, levada a sério. E isso vale para todos: médicos, enfermeiros, técnicos, estudantes, professores, gestores e instituições de ensino.

Quando o jaleco se transforma em escudo para o desrespeito

As estudantes em questão não citaram nomes, mas deram detalhes suficientes para que a paciente fosse identificada. Fizeram suposições sobre o motivo de um transplante ter falhado — atribuindo a culpa à própria paciente — e encerraram com um comentário irônico, que banaliza o sofrimento e a complexidade dos procedimentos enfrentados. Vitória foi reduzida a uma curiosidade clínica, e sua dor — assim como a de sua família — a mero conteúdo viralizável.

O que se viu foi uma inversão de valores: onde deveria haver empatia, houve zombaria; onde deveria haver silêncio e respeito, houve exposição e julgamento.

Sigilo, empatia e verdade: fundamentos inegociáveis

Todo profissional de saúde tem como princípio ético o sigilo. A exposição de casos clínicos sem autorização, mesmo que sem citar o nome do paciente, é passível de punição, tanto moral quanto legal. Mas há algo ainda mais grave do que a quebra da confidencialidade: a crueldade disfarçada de opinião clínica, a desinformação travestida de bastidor médico.

O que essas estudantes demonstraram não foi apenas imaturidade. Foi despreparo. E não se forma um bom médico ou profissional da saúde apenas com boas notas — mas com consciência de que do outro lado existe alguém vulnerável, doente, esperançoso, humano.

A medicina precisa de sensibilidade — e vigilância

Vitória não era uma estatística. Era uma jovem que sonhava em ser médica, que enfrentou décadas de internações, cirurgias, rejeições e limitações físicas. Sua trajetória já havia emocionado o país em reportagens que mostraram sua resiliência. Expô-la, publicamente, pouco antes de sua morte, é um gesto de violência emocional contra ela e sua família.

É papel das universidades e dos hospitais ensinarem os limites entre aprendizado e exposição. E é dever dos conselhos profissionais cobrarem postura ética mesmo entre estudantes, porque o comportamento de hoje é o reflexo do profissional que será amanhã.

A quem cabe o exemplo?

O caso está sendo investigado pelo Ministério Público e pela Polícia Civil como injúria. As universidades prometeram apuração e se manifestaram com pesar. A FMUSP, responsável pelo Incor, repudiou veementemente a atitude e reforçou o compromisso com a ética.

Mas é preciso ir além do repúdio formal. É preciso transformar indignação em ação: incluir ética médica e de saúde como disciplina central desde os primeiros semestres dos cursos; fiscalizar o comportamento de estagiários; reforçar o uso responsável das redes sociais. E, principalmente, promover uma cultura de cuidado real — onde o paciente, vivo ou morto, seja tratado com o mesmo respeito que gostaríamos de receber.

Porque ética, na saúde, não é conteúdo para curtidas — é compromisso com a vida.