Bolsonaro joga com religiões por popularidade, diz 1ª mulher a liderar conselho de igrejas cristãs

  • Edison Veiga
  • De Bled (Eslovênia) para a BBC News Brasil
A pastora Romi Márcia Bencke durante cerimônia
Legenda da foto, A pastora luterana Romi Márcia Bencke, que estuda o diálogo interreligioso

A pastora luterana Romi Márcia Bencke defende que o termo “evangélicos” é mal compreendido no Brasil contemporâneo. “Quem são os sujeitos desse universo gigantesco chamado evangélico?”, diz a líder religiosa, reconhecida pela postura progressista.

“Assim como a Igreja Católica é extremamente plural com infinitas igrejas dentro de uma grande igreja, também temos (evangélicos) conservadores, tradicionais, progressistas… Tem de tudo.”

Bencke afirma que o segmento se tornou amplamente conhecido com o advento das chamadas igrejas neopentecostais, mas os protestantes já estão presentes há muito tempo no Brasil. Ela cita dificuldades para a denominação ser reconhecida no período do império e a repressão ocorrida no governo Getúlio Vargas. “Isso fez com que tivéssemos uma presença muito discreta na sociedade brasileira, embora não menos relevante”, explica.

Os evangélicos no Brasil são classicamente divididos entre os grupos de heranças protestantes mais tradicionais (como metodistas, batistas e presbiterianos) e os neopentecostais e pentecostais (igrejas como a Assembleia de Deus e a Universal).

A líder religiosa observa que os mais conservadores chamam mais atenção, mas recorda que, ao longo da carreira, trabalhou em comunidades temas como direitos sexuais e reprodutivos das mulheres. “E isso nunca foi problema”, ressalta. “Tem abertura para debate.”

Para ela, dentro das igrejas a polarização ideológica e política do país está presente “muito fortemente”. E isso tem afetado principalmente as igrejas menores. “Tudo é ideologizado. Por exemplo: tu vais falar do Evangelho e que Jesus caminhava com as pessoas pobres e perdoava a mulher pega em adultério, coisa e tal, aí já vira um ‘ó, o que está defendendo’. É um negócio difícil hoje você conseguir fazer um trabalho comunitário”, afirma.

Ao longo da carreira, a gaúcha atuou em defesa de direitos sexuais e reprodutivos das mulheres desde os tempos em que liderava uma comunidade em São Sepé (RS), atuou no auxílio a migrantes e trouxe para a pauta de suas comunidades temas ligados à cidadania, às relações de gênero e à modernidade desde que foi ordenada sacerdote da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil, em 1999.

Em 2012, Bencke se tornou a primeira mulher a assumir a secretaria geral do Conselho Nacional de Igrejas Cristãs do Brasil (Conic). Tornou-se, então, uma voz pública nos debates brasileiros.

“A sociedade brasileira no dia a dia tem uma tendência mais conservadora. Ou da dupla moral, que é pior do que o conservadorismo. O conservador diz o que pensa. Eu posso não concordar, mas é o que ele pensa. O problema é a dupla moral: o sujeito que defende a família e tem duas famílias desconhecidas”, argumenta.

A pastora luterana afirma que a polarização no Brasil está gerando “uma teologia bem vazia” que não abarca as contradições humanas da realidade. “A gente ter divergências, posições diferentes, visões de mundo diferentes é ok. Mas tem ido além do pensar diferente.”

“A polarização gera violência, divide comunidades, divide famílias: essa é a realidade que estamos vivendo hoje. As pessoas que têm papel de liderança preferem não tocar nesses temas. Só que as pessoas se alimentam por redes sociais, entram no YouTube do influencer não sei das quantas, circulam nesses grupos do Telegram, do WhatsApp. E isso se reflete no convívio das igrejas.”

Bencke conta que muitos pastores preferem não tocar em temas considerados delicados para evitar cisões em suas comunidades.

Ideologias

A pastora luterana Romi Bencke durante evento
Legenda da foto, Bencke explica que os evangélicos que estão no alto escalão da política são os conservadores das igrejas protestantes tradicionais.

A pastora relata que missionários conservadores têm recorrido a ferramentas didáticas para incutir conceitos como “ideologia de gênero” e “ameaça comunista” na sociedade.

“Dizem: ‘toma cuidado, querem que seu filho vire menina’. Claro, uma mãe que não está muito instruída e não está a par desses debates não vai querer isso. E eles (os missionários) manipulam muito e nisso têm muita força. Fazem cartilha, desenho animado, tudo para explicar. Usam metodologia da educação popular. Usam a linguagem popular e vão inflando o temor nas pessoas. Eu não responsabilizo a trabalhadora doméstica que pensa ‘meu Deus, querem que a menina vire menino'”, conta.

Bencke afirma que responsabiliza, sim, “quem, de maneira muito consciente, muito ideológica, promove esse tipo de insegurança e de medo na sociedade”.

“A sociedade teve mudanças e esses temas estão no dia a dia. As pessoas têm de falar sobre eles. Temos de conversar sobre esses assuntos, mas esses grupos (conservadores) impedem aquilo que é o mais importante numa sociedade democrática: a gente poder falar, debater livremente sobre todos os temas. E eles impedem com muito autoritarismo e repressão que essa discussão aconteça”, diz.

“A Frente Parlamentar Evangélica, quando o [presidente Jair] Bolsonaro ganhou, lançou um documento que era como se fosse uma proposta de governo. E o foco era a educação e a cultura. Que é bem o que a gente está vendo: eles estão fazendo todo o desmonte da educação e da cultura. São as pautas prioritárias deles e isso é pensado”, comenta. “Não é ingênuo.”

Política e fé

Bencke argumenta que os evangélicos que estão no alto escalão da política são os conservadores das igrejas protestantes tradicionais, e não os representantes das igrejas neopentecostais.

“O ministro da Educação (Milton Ribeiro) é da IPB (Igreja Presbiteriana do Brasil). André Mendonça (novo ministro do Supremo Tribunal Federal) também. Quer dizer: são do presbiterianismo histórico os que estão lá”, diz. “A gente tende a responsabilizar Edir Macedo, Silas Malafaia — e não estou aqui defendendo esses líderes, são pessoas muito controversas.”

Bencke define a IPB como uma igreja “bem conservadora mas muito intelectualizada”. “Pode ser uma intelectualidade que a gente discorda, mas é intelectualizada. E classe média alta. Esse é o estilo da IPB. Já as igrejas pentecostais, elas servem mais como curral eleitoral, espaço para fazer propaganda política. Mas quem pensa e ocupa (o poder) é uma determinada elite de protestantes. Uma parcela masculina, branca, com dinheiro. É essa que pensa”, afirma.

Em sua visão, o presidente Bolsonaro joga com as religiões, pois não se define entre católicos e evangélicos, é “um híbrido”.

“Eu acho que o Bolsonaro é um baita de um esperto. Vem de uma tradição católica, daqueles católicos como tem muitos no Brasil que se dizem católicos mas não são frequentadores. Então se batizou nas águas do Rio Jordão (em cerimônia conduzida pelo político e pastor Everaldo, da Assembleia de Deus, em 2016, durante viagem a Israel) um pouquinho antes de se tornar candidato, como se tivesse recebido uma unção para isso”, recorda a pastora.

“Mas olha só: quando um novo fiel pentecostal quer ser batizado, tem de renunciar ao seu batismo anterior para poder aceitar o novo, porque isso simboliza a conversão. Bolsonaro não fez isso. Ele manteve um pé no catolicismo e um pé no pentecostalismo. Com isso ele consegue jogar com as duas maiores vertentes do cristianismo no Brasil. Ele representa bem esse híbrido religioso do Brasil, um pouco disso, um pouco daquilo”, reflete a pastora.

“E joga também com os grupos ultraconservadores da Igreja Católica Romana, tem adesão desses grupos. Isso garante a ele a popularidade, garante para ele um certo aspecto de que ele é popular. Quando vai aos cultos, diz que é evangélico, não é católico. Quando vai à Igreja Católica, diz que é católico, e não evangélico.”

Ministro “terrivelmente evangélico”

A pastora Romi Márcia Bencke
Legenda da foto, Em 2012, Bencke se tornou a primeira mulher a assumir a secretaria geral do Conselho Nacional de Igrejas Cristãs do Brasil (Conic)

Ainda sobre o avanço de grupos cristãos nas esferas de poder sob o governo Bolsonaro, ela diz que a escolha de André Mendonça como o “ministro terrivelmente evangélico” vai contra a exigência de competências técnicas e pré-requisitos constitucionais.

“Como seria se o presidente fosse candomblecista e dissesse que ‘quero um ministro terrivelmente candomblecista’? Ou ‘uma ministra terrivelmente feminista?’ Não. A pessoa tem de estar preparada para exercer o cargo”, comenta.

“Isso é muito complicado aqui no Brasil. A gente fala sobre laicidade do Estado, mas isso é um monstro que ninguém sabe o que é que significa”, comenta.

Mulheres à frente das igrejas

Como a primeira mulher à frente do Conselho Nacional de Igrejas Cristãs do Brasil, Bencke afirma não sentir discriminação no dia a dia. Mas ressalta que “há contextos que precisam ser considerados”.

Ela relata que assumiu o cargo em um cenário de crise institucional da entidade e acha que isso facilitou sua entrada. “Eu vejo que, no que diz respeito às igrejas, esses ambientes de crise são quando elas se abrem para a mulher. Quando está tudo bem, geralmente são os homens que ocupam os espaços”, analisa.

Não porque esperam que só uma mulher pode resolver. “Mas se não resolver, é muito fácil dizer que ‘a fulana afundou o projeto’. Que é de todos, né? Há uma visão bem patriarcal, bem machista sobre o papel das mulheres. Mas, no convívio do dia a dia, nunca me senti desrespeitada.”

Na Campanha da Fraternidade lançada no início deste ano, a pastora se viu alvo de manifestações de ódio de grupos conservadores. Projeto anual da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), organismo católico, a campanha tem caráter ecumênico e teve Bencke como uma das articuladoras.

O texto-base da campanha trouxe a necessidade de defesa de minorias — pessoas LGBT, populações indígenas, violência contra mulheres, perseguição a defensores dos direitos humanos.

“Teve umas lives que foram feitas pelo Centro Dom Bosco (organização católica conhecida por posturas ultraconservadoras). Eles colocavam minha imagem e chamavam (os seguidores) para uma guerra, uma cruzada, a ideia de banir o inimigo — o inimigo era personalizado simbolicamente pela minha pessoa. Isso foi muito forte, muito impactante”, recorda ela.

Meses depois, ela avalia o episódio como “um processo de aprendizagem”, embora enfatize que as agressões — suscitadas pela exposição nas redes sociais — foram “bem violentas”.

Procurado pela reportagem, o Centro Dom Bosco enviou uma nota assinada por Alvaro Mendes, vice-presidente da entidade e autor dos vídeos sobre a pastora. Segundo ele, “o Conic é uma organização revolucionária minúscula de extrema-esquerda e não representa nem os católicos nem os evangélicos”.

“O texto-base foi elaborado com o intuito de difundir as ideologias da Teologia Ecofeminista da Libertação dentro das paróquias e ofendeu os católicos de todo o país. Nós só queremos que a Igreja seja respeitada e que a quaresma seja vivida de uma forma santa e não politizada”, afirmou Mendes.

“Somos contra qualquer tipo de agressão. Ao mesmo tempo acreditamos que o argumento de ‘agressões virtuais’ soa como um vitimismo que deve ser desconsiderado. Trata-se de um recurso utilizado para tentar desqualificar qualquer argumento contrário. O foco do debate deve ser mantido dentro do campo argumentativo e nos causa estranheza o fato de a Romi Bencke nunca ter vindo a público para defender a sua versão do texto-base”, completou.