28 de Maio de 2020


Germaine e Kamilly foram internadas juntas com covid-19; enquanto mãe, que é hipertensa, se recuperou, a filha apresentou quadro grave da doença e morreu

Os dias em uma área de isolamento em um hospital público de Duque de Caxias, na Baixada Fluminense, foram os últimos momentos da dona de casa Germaine Herculano dos Santos, de 43 anos, ao lado da filha Kamilly Ribeiro, de 17 anos.

Mãe e filha foram internadas em um posto de saúde em Xerém, distrito de Duque de Caxias, em 23 de março, após apresentarem quadro suspeito de covid-19. Na unidade de saúde, permaneceram isoladas juntas. Dois dias depois foram encaminhadas para o Hospital Moacyr do Carmo, na mesma cidade.

Germaine, que faz parte do grupo de risco por ser hipertensa, se recuperou dias depois e recebeu alta. Kamilly, que não tinha nenhuma doença pré-existente e não se enquadrava entre os pacientes de risco, apresentou complicações graves e não resistiu.

“A minha filha era totalmente saudável, nunca ficava doente. Desde o princípio, sempre achava que ela fosse se recuperar. Nunca pensei que ela seria vítima desse vírus”, diz Germaine à BBC News Brasil.

Kamilly fez parte de um grupo pequeno em meio à pandemia do novo coronavírus: o de jovens saudáveis com complicações graves em decorrência da covid-19.


Kamilly Ribeiro, de 17 anos, não tinha comorbidades. A jovem era estudiosa, iria prestar Enem neste ano e sonhava em cursar medicina

Estudos apontam que os pacientes sem comorbidades e com menos de 50 anos correspondem a menos de 1% das pessoas em estado grave em decorrência do Sars-Cov-2, nome oficial do novo coronavírus. Quanto mais jovem, menos chances de apresentar complicações.

“Os médicos ficaram surpresos com o caso da minha filha. Não sabiam mais o que fazer, porque ela não tinha nenhum problema de saúde antes. Infelizmente, é algo difícil de entender”, declara Germaine.

Os casos mais graves comumente acometem pessoas idosas ou com doenças pré-existentes, como hipertensão, diabetes, cardiopatias, entre outras.

Histórias como a de Kamilly, segundo estudos ainda incipientes, podem ser explicadas por particularidades genéticas que influenciam o modo como o coronavírus afeta o organismo do paciente.

“O nosso sistema imunológico é o responsável por definir se vamos responder bem ou não ao Sars-Cov-2. Geralmente, esse sistema está afetado em pessoas com comorbidades ou idosas, por isso estão nos grupos de risco. Mas em alguns casos raros, o sistema imunológico tem uma falha pontual crítica mesmo sem comorbidades conhecidas e, por isso, a pessoa acaba desenvolvendo um quadro grave ou até morrendo em decorrência do coronavírus”, diz o médico infectologista Alexandre Naime, chefe de Infectologia da Universidade Estadual Paulista (Unesp), em Botucatu (SP).

Os sintomas iniciais

No início de março, Germaine acompanhava diariamente o pai, de 71 anos, em um hospital público da Baixada Fluminense. O idoso havia sofrido um Acidente Vascular Cerebral (AVC) e estava internado. “A minha mãe também é idosa e meu irmão não mora no Rio de Janeiro. Então, eu era a única pessoa que poderia acompanhá-lo”, diz a dona de casa. Direito de imagem Arquivo pessoal Image caption Pais de Kamilly tentam recomeçar a vida após perder a filha mais velha para a covid-19


A adolescente junto com o irmão caçula, de três anos, e a mãe

Kamilly ficava em casa para cuidar do irmão mais novo, de três anos. A jovem também passava parte dos dias se dedicando aos estudos e sonhava em cursar Medicina.

Por volta do fim da segunda semana de março, Germaine começou a apresentar problemas de saúde. “Tive arrepios pelo corpo, tremedeira, calafrios e febre”, diz. Ela foi a uma unidade de saúde da região, passou por exames e foi diagnosticada com pneumonia. “Disseram que não era coronavírus e sequer fizeram testes. Como ainda era algo novo, eu não tinha muita informação sobre o assunto e fui para casa”, detalha.

O primeiro caso do novo coronavírus em Duque de Caxias foi confirmado em 23 de março. Hoje, o município tem o segundo maior número de mortos no Rio de Janeiro, atrás apenas da capital. Até o momento, são mais de 185 óbitos por covid-19 na cidade.

Enquanto tomava os medicamentos para a suposta pneumonia, Germaine ficou de repouso em casa. Kamilly ajudava a mãe o dia inteiro. A adolescente reclamava de dores nas costas, mas não demonstrava preocupação com o problema. “Depois, ela começou a tossir e teve muita febre. Com o passar dos dias, a situação foi piorando. Demos medicamentos para gripe para ela, mas nada melhorava”, relata a dona de casa.

Em 23 de março, Kamilly foi a um posto de saúde junto com o pai, o barbeiro José Antônio dos Santos. Na unidade, passou por raio-X, que mostrou que o pulmão dela estava comprometido e tinha aspecto semelhante ao de pacientes com a covid-19. Os médicos logo pediram que a jovem fosse isolada e permanecesse no hospital. Germaine, que estava em casa, foi ao hospital para levar roupas para a filha e a equipe médica também a examinou — o marido dela e o filho caçula não apresentaram sintomas.

“Quando viram meu pulmão, notaram que estava comprometido com o dela. Nós duas fomos colocadas em um quarto em isolamento”, relata.

A dona de casa critica o atendimento que recebeu nos primeiros dias. “Parecia que tinham medo de ficar perto da gente, mesmo com os equipamentos de proteção. Nós chamávamos e ninguém nos atendia. Deveriam ter mais empatia.”

Posteriormente, mãe e filha foram levadas para o Hospital Moacyr do Carmo, onde permaneceram isoladas. As duas receberam o mesmo tratamento, que incluiu cloroquina. Direito de imagem Arquivo pessoal Image caption A adolescente junto com o irmão caçula, de três anos, e a mãe

Eleitora de Jair Bolsonaro, Germaine afirma não ter opinião formada sobre a decisão do presidente em determinar que o Ministério da Saúde oriente o uso da cloroquina em pacientes com a covid-19. “Não sou médica, nem pesquisadora, então não posso dizer. Quem precisa definir isso são os cientistas. Apesar de ter votado no Bolsonaro, há muitas coisas que ele diz e eu não concordo”, declara.

“Mas não gosto quando dizem que minha filha morreu mesmo usando cloroquina. Eu também usei e sobrevivi. Não dá para falar que foi o medicamento que me salvou, nem que a prejudicou. Penso que devemos seguir o que dizem os estudiosos da área”, diz Germaine.

Recentemente, a Organização Mundial de Saúde (OMS) suspendeu os estudos com a cloroquina em pacientes com a covid-19, após diversas pesquisas apontarem riscos no uso do medicamento. Apesar disso, o Ministério da Saúde informou que continuará recomendando o remédio, ao menos por enquanto.

O agravamento de jovens saudáveis

Enquanto Germaine apresentava melhora, Kamilly piorava. “Ela tinha muita falta de ar. Me desesperei quando a minha filha começou a vomitar sangue. Eu chamava por ela, mas ela não respondia. Comecei a bater no vidro do quarto para chamar os médicos”, relata a mãe. A adolescente foi levada para a Unidade de Terapia Intensiva (UTI), onde foi intubada. “Vi a minha filha pela última vez quando a levaram para a UTI. Não imaginava que aquele seria o nosso último momento”, diz.

Os médicos que acompanharam a adolescente não esperavam que ela fosse ter um quadro tão grave, segundo Germaine. “Frequentemente, me perguntavam se ela tinha alguma comorbidade e eu sempre respondia que não. Fizeram vários exames de sangue nela e nenhum apontou qualquer doença pré-existente”, relata.

A dona de casa conta que os profissionais que acompanharam a adolescente não souberam explicar os motivos que levaram Kamilly a apresentar quadro extremamente grave da covid-19.

Os estudos iniciais apontam que as mortes de jovens saudáveis por covid-19 podem estar relacionadas, principalmente, à predisposição genética. Direito de imagem Arquivo pessoal Image caption Germaine junto com Kamilly, na época com sete anos: últimos momentos de mãe e filha juntas foram em isolamento de hospital

“Pode haver casos de pessoas com susceptibilidade genética a infecções pontuais. Todos nascemos com um código genético, o DNA, que traz um roteiro de respostas a diferentes estímulos, tanto bons quanto ruins na vida. Isso define se o organismo da pessoa vai ou não ter uma resposta a determinados patógenos”, explica o infectologista Alexandre Naime.

O médico pontua que há casos de jovens saudáveis que morrem por influenza ou outras enfermidades que raramente afetam os mais novos. “Tudo depende da sequência genética da pessoa. Nisso está codificado quais respostas ela terá em termos de anticorpos e ação celular quando for exposta a diversos patógenos. São códigos que nascem com a pessoa e são chamados de memória imunológica.”

Pesquisadores estudam quais outros pontos, além da predisposição genética, podem fazer com que o Sars-Cov-2 afete gravemente alguns jovens saudáveis. Tais estudos são importantes também para ajudar na descoberta de novos tratamentos para a covid-19.

Sem despedidas

Apesar de ser hipertensa, Germaine teve uma boa recuperação e recebeu alta hospitalar sete dias após ser internada. Isolada em casa, ela passava os dias preocupada com a filha.

Nos primeiros dias intubada, Kamilly apresentou melhora e respondeu bem aos medicamentos. Em seus últimos dias, porém, a adolescente piorou. Em 14 de abril, após 20 dias internada, Kamilly não resistiu. Na certidão de óbito da jovem consta que ela teve choque séptico, pneumonia e infecção por covid-19 — o exame da jovem, feito logo após a internação, ficou pronto enquanto ela estava intubada.

“Quando me contaram que ela morreu, eu comecei a chorar e a gritar desesperada. A minha filha só tinha 17 anos. Como pode, né? Ela era saudável. Eu achava que eu, hipertensa, tinha mais chances de morrer que ela. Eu senti um vazio muito grande. A morte dela

me trouxe uma sensação de impotência diante da vida. A gente não tem controle de nada”, desabafa Germaine.

Dias antes, a dona de casa teve de lidar com outra perda: a morte do pai, em 2 de abril, em decorrência do AVC que sofrera no início do ano.

A dona de casa não participou da cerimônia de despedida do pai, assim como também não conseguiu se despedir da filha. Ela ainda apresentava sintomas da covid-19 e foi orientada a permanecer isolada em casa.

Evangélica, Germaine revela que se apegou à religião para lidar com a saudade constante da filha. “Cheguei a questionar Deus, mas agora acredito que a morte da Kamilly foi uma vontade dele. Ele queria a minha filha por perto. Ela sempre foi muito religiosa e era muito querida na igreja. Acredito que agora ela está ao lado dele e em um lugar melhor”, declara.

Recuperada da covid-19, a dona de casa tenta retomar a vida. “Às vezes ainda tenho uma crise de choro. Nós estamos sofrendo muito. Precisamos seguir em frente, mas está sendo muito difícil. A morte dela foi uma tristeza enorme. A gente tinha esperança de que ela voltaria para casa”, diz.

Vinicius Lemos Da BBC News Brasil em São Paulo