11 de Abril de 2020
Juliana Gragnani – @julianagragnani Da BBC News Brasil em Londres
Às vezes, ele tem vontade de dar um abraço ou um “cheiro” na mãe, mas Joseildo sabe que não pode. Por causa do coronavírus e porque não tem dinheiro para alugar um quarto, o técnico em enfermagem passou a dormir no terraço da casa, revezando entre um colchão no chão gelado e uma rede. Ele tem medo de contagiar a mãe, de 74 anos, que tem asma, pressão alta e, há um mês, sofreu um infarto.
“Quando soube que poderia transmitir para ela, pensei: ‘para onde eu vou?’ Com o salário que a gente ganha, não dá para alugar um quartinho. Eu não quero, casa, hotel, só quero um quarto para poder ficar tranquilo e exercer minha profissão sem medo de machucar a minha mãe, meu bem maior”, diz Joseildo da Silva Batista, de 33 anos, que trabalha em uma UPA (Unidade de Pronto Atendimento) em Campina Grande, na Paraíba.
Pelo trabalho de 13 plantões mensais de 12 horas (divididos entre seis de 24 horas e um de 12), ele recebe o salário mínimo: R$ 1.045, ou R$ 946 líquidos. Ou seja, R$ 80 por cada plantão de 12 horas.
Usa o dinheiro para pagar pensão para o filho de sete anos e ajudar a mãe em casa, onde moram também duas irmãs e duas sobrinhas. Antes, ele, a mãe e uma irmã dormiam no mesmo quarto, por falta de espaço na casa. Agora, diz passar um pouco de frio no terraço – Campina Grande fica na serra – mas nada que o impeça de “seguir a vida”.
A Secretaria de Saúde de Campina Grande informou, nesta sexta (10), que disponibilizou hospedagem para profissionais de saúde que precisem ficar isolados de familiares, incluindo Joseildo, em um hotel da cidade.
Joseildo trabalha na linha de frente: casos suspeitos chegam na UPA e depois são encaminhados ao hospital. Na cidade dele, há três casos confirmados até agora. Em todo o Estado da Paraíba, eram 79 até esta sexta (10).
Como Joseildo, profissionais de enfermagem de todo o país recebem salários baixos para trabalhar longas horas e exercer um trabalho fundamental na linha de frente ao combate desta pandemia. De todos os profissionais de saúde, eles são os que mais têm contato com pacientes com covid-19, a doença causada pelo vírus.
Muitos têm trabalhado sem equipamento de proteção necessário, como máscaras, luvas e aventais adequados, escasso em diversos hospitais públicos e privados pelo Brasil. Expostos, estão praticamente arriscando a vida. O Conselho Federal de Enfermagem (Cofen) já contabiliza 17 mortes de profissionais de enfermagem no Brasil que tiveram suspeita ou confirmação de covid-19.
Por causa dos salários baixos, grande parte dos profissionais acumula mais de um emprego – às vezes um no setor público e outro no privado, segundo Manoel Neri, presidente do Cofen. “É uma sobrecarga muito grande que pode interferir na qualidade de assistência e que leva à falta de tempo para se aperfeiçoar e para estar com a família”, diz. Há casos de concursos para técnicos de enfermagem oferecendo salário mínimo, como no caso de Joseildo, ou até menos que isso. A categoria não tem piso salarial.
Na Alemanha, enfermeiros agradeceram as rodadas de aplausos da população durante esta pandemia do coronavírus, mas reivindicaram também aumento salarial. Um abaixo-assinado com o pedido angariou 350 mil assinaturas até o final de março, segundo reportagem da Deutsche Welle.
No Brasil, profissionais de saúde desabafam nas redes sociais sobre a desproporção entre o risco que correm e o salário que recebem: “os aplausos são lindos, mas reconhecimento poderia vir um pouco no salário também, afinal, todos precisamos para viver”, comentou uma enfermeira em uma postagem com a história de Joseildo.
Em outra publicação, uma enfermeira reclamava de ter recebido a oferta para fazer plantões de triagem de pacientes com sintomas de covid-19. Por plantões de 12 horas, receberia R$ 80, o mesmo valor que Joseildo recebe. “Homenagens batendo palmas na janela não pagam nossos boletos, o sustento dos nossos filhos. Estudamos demais para isso”, desabafou.
Leito do paciente
Hoje, o Brasil tem um total de 2,2 milhões de profissionais da área, entre enfermeiros, técnicos em enfermagem, auxiliares de enfermagem e obstetrizes. Uma pesquisa conduzida pelo Cofen e a Fiocruz em 2014 mostrou que 10% desses profissionais estavam desempregados.
A pesquisa também traçou um perfil dos profissionais de enfermagem do Brasil: são mulheres, em sua maioria (85,1%), com crescente aumento de participação masculina. A maioria dos profissionais são pretos ou pardos (53%), seguido de brancos (41,5%). Há uma concentração de profissionais na região Sudeste, enquanto Norte e Nordeste sofrem com uma carência deles.
Segundo a pesquisa, 17,8% da categoria recebiam “subsalários”, ou menos de R$ 1 mil mensais na época do estudo, produzido em 2016 com dados de 2014.
Para Neri, a renda dos profissionais de enfermagem deveria levar em conta fatores como o risco, “não só agora em período de pandemia”. “Não só o trabalho insalubre, como o penoso. O profissional trabalha em plantões noturnos, no fim de semana, feriados. Muitos trabalham em plantões de até 24 horas seguidas”, observa.
Ele diz que os profissionais também têm “uma grande importância social para a saúde” porque “são os que ficam na cabeceira do leito do paciente durante 24 horas para fazer seus cuidados – desde os mais simples, como o banho -, até os de alta complexidade, na UTI”.
A pesquisa do Cofen e da Fiocruz também registrou que 64,2% dos auxiliares e técnicos consideravam sua atividade desgastante.
“A enfermagem recebe muito pouco pela responsabilidade que temos, nossas habilidades, nossa formação e a dedicação que temos em relação aos nossos pacientes. É uma sobrecarga para uma remuneração muito pequena”, diz Bruna Costa, 30, coordenadora de plantão em uma unidade básica de saúde em Bom Jesus do Amparo, Minas Gerais.
“Às vezes, deixamos de comer, de ir ao banheiro, e 12 horas acaba sendo pouco para o tanto de serviço que temos para fazer. Não paramos em nenhum momento para dar conta de tudo o que está acontecendo. Nós gerenciamos a unidade, cuidamos dos pacientes. Se tem pia quebrada, teto pingando, é a enfermagem que tem que resolver.”
Marcelo, enfermeiro que trabalha na região do Vale do São Francisco, trabalha em dois locais. No setor privado, recebe R$ 2 mil, trabalhando 144 horas mensais. Na rede pública, R$ 2.600, trabalhando mais 156 horas mensais.
Agora, afastado por apresentar sintomas da covid-19 após trabalhar sem equipamento de proteção adequado, não recebeu auxílio de nenhuma das unidades de saúde para fazer o teste e saber se está com a doença. Tirou dinheiro do próprio bolso para pagar um exame e saber quando poderá voltar ao trabalho. Seu nome foi modificado para proteger sua identidade.
Joseildo, o técnico em enfermagem forçado a dormir no terraço de casa para não contaminar a mãe, também tem que fazer bicos para complementar a renda. Trabalhava às vezes como segurança, mas, com a pandemia, já não pode mais.
A boa notícia, contudo, é que, poucas horas depois de compartilhar seu drama em um comentário no Instagram, recebeu ajuda. Uma empresa de vaquinha online viu o pedido e ofereceu divulgá-lo. Em só dois dias, foram arrecadados R$ 34 mil.
“Eu não quero para mim. Tirando o dinheiro para alugar um quartinho, vou fazer doações na minha cidade, porque tem muita gente precisando, e as pessoas vão passar por dificuldades. Já que estou sendo agraciado, tenho que agraciar mais pessoas”, diz.
O que ele gostaria, no entanto, é que os profissionais de enfermagem fossem mais valorizados. “Recebo praticamente menos do que o salário mínimo. Não digo que é constrangedor porque não trabalho pelo dinheiro. É por amor. Mas a gente está na linha de frente o ano todo, estamos lidando com a vida e a morte das pessoas. Os governantes poderiam olhar para nós com um olhar diferente.”
Salário e desemprego
A carreira de enfermagem é dividida em três categorias:
– Enfermeiro: é o profissional com bacharelado, graduado em um curso de 5 anos. É o que tem a maior formação e está apto a fazer todos os cuidados da enfermagem, inclusive os de média e alta complexidade. Está a apto a prescrever medicamentos e requisitar exames mediante protocolos. O Brasil tem cerca de 540 mil enfermeiros
– Técnico em enfermagem: profissional que fez curso de técnico que auxilia enfermeiro em cuidados de média e alta complexidade sob supervisão do enfermeiro. Representa o maior número de trabalhadores do setor: 1,2 milhões
– Auxiliar de enfermagem: faz os cuidados mais simples de enfermagem; cursos técnicos têm diminuído muito e profissão está em rota de extinção no Brasil. Há 400 mil auxiliares de enfermagem no país
Não há piso salarial para profissionais de enfermagem, algo reivindicado pela categoria. Um projeto de lei foi apresentado na Câmara no ano passado, mas ainda não passou por comissões para ser analisado. De autoria do deputado Mauro Nazif (PSB – RO), estabelece o piso do salário para enfermeiros em R$ 4.650,00 (a ser reajustado). Para técnicos de enfermagem, 50% do valor e, para auxiliares, 40%.
Os valores oferecidos atualmente diferem muito disso, e órgãos regionais do conselho de enfermagem constantemente emitem notas rejeitando salários oferecidos em concursos para a categoria. Em 2019, o município de Araruama, no Rio, por exemplo, abriu concurso para enfermeiros (20h semanais) e técnicos de enfermagem (44h semanais), oferecendo um salário de R$ 998 – salário mínimo do ano passado. O conselho regional de Pernambuco já reclamou com o município de Sirinhaém por abrir um concurso, em 2017, que previa o salário de R$ 500 para enfermeiros.
No geral, segundo a pesquisa da Cofen e Fiocruz, quase metade dos profissionais da categoria recebiam entre R$ 1.000 e R$ 3.000.
Número alto de profissionais, mas condições ruins de trabalho
Durante a pandemia do coronavírus, o Cofen tem registrado dois movimentos diferentes, segundo Neri. Por um lado, há profissionais que têm pedido demissão de um dos empregos com medo de se contaminar ou levar a contaminação para a família, por falta de equipamento de proteção adequado.
Por outro, por causa da grande demanda gerada nos sistemas de saúde, apenas no mês de março, 23 mil profissionais fizeram registro (necessário para poderem trabalhar na profissão) no Cofen, dobrando a média mensal. A categoria tem ociosidade de profissionais, já que há muitos formados desempregados que não conseguem engatar na carreira porque falta experiência – algo que pode mudar durante a crise do coronavírus.
O relatório “O estado da enfermagem no mundo 2020” da OMS (Organização Mundial de Saúde), lançado nesta semana, apontou um déficit de 5,9 milhões de profissionais em todo o mundo. O Brasil, contudo, tem uma proporção acima da média mundial, equivalente a de países ricos.
“Infelizmente, nós temos uma faixa de 10% de profissionais de enfermagem desempregados no Brasil. São mais de 200 mil profissionais”, diz Neri. “Por isso, o Brasil é um dos poucos países do mundo que tem reserva de profissionais que podem ser contratados agora nesse momento de crise. A maioria dos países não tem.”
Isso se deu por causa de uma política de expansão da formação, principalmente nas mãos de instituições privadas. Elas formaram 57,4% dos enfermeiros e 72% dos técnicos e auxiliares, segundo a pesquisa de 2016.
Mas o relatório da OMS também apontou problemas. Na categoria das regulações e condições de trabalho, o Brasil ficou com dois pontos em um índice de um a seis, equivalente ao desempenho da Índia e do Camboja. O indicador avalia questões como segurança no trabalho, horas de trabalho, proteção social, contratos temporários e plano de carreira.
“Nesse período de pandemia, a sociedade brasileira está começando a olhar para os profissionais de enfermagem de forma diferente”, diz Neri. “É preciso valorizá-los e melhorar suas condições para que possam trabalhar e viver com dignidade.”
Eu, Ivan Rodrigues, enfermeiro, reforço as palavras do nosso presidente Neri, chamando os governantes e sociedade à reflexão sobre as palmas que os profissionais de saúde, mundo a fora têm recebido. Espero que entendam de agora em diante, que não queremos apenas palmas, queremos valorização!