19 de Janeiro de 2020
Remédios bloqueadores de puberdade estão no centro de uma disputa legal que envolve o sistema de saúde pública do Reino Unido (o NHS), ao mesmo tempo em que, no Brasil, seu uso em tratamentos pode ser expandido.
Nos primeiros dias de 2020, chegou à Suprema Corte britânica um processo movido por uma mãe e uma enfermeira contra a Tavistock and Portman NHS Trust, fundação que comanda o único serviço britânico voltado à identidade de gênero, chamado Gids.
De um lado do processo, advogados argumentam que seria ilegal receitar bloqueadores hormonais — que restringem os hormônios ligados a mudanças no corpo durante a puberdade, como a menstruação ou o surgimento de pelos faciais — a menores de idade do Reino Unido, sob a percepção de que esses jovens não estariam aptos a consentir de modo informado ao tratamento.
De outro, a fundação Tavistock afirmou que adota uma abordagem “cautelosa e atenciosa” no tratamento com crianças e jovens.
Veja, a seguir, o que são esses medicamentos e em que consiste o processo judicial no Reino Unido, bem como as mudanças em relação ao acompanhamento de jovens trans no Brasil.
O que são e para que servem os remédios
Bloqueadores de puberdade são receitados para algumas crianças e adolescentes vivenciando a disforia (ou incongruência) de gênero, descrita como a situação em que “a pessoa sente desconforto ou sofrimento por haver uma desconexão entre seu sexo biológico e sua identidade de gênero”. Isso significa que elas se sentem presas em um corpo que não reflete sua identidade.
“A identificação de gênero ocorre, na maior parte das vezes, em algum momento entre 3 e 5 anos de idade. Trata-se de como a pessoa se sente e como se identifica (se do gênero feminino ou masculino)”, explica à BBC News Brasil o urologista Tiago Elias Rosito, cirurgião-chefe do Programa de Identidade de Gênero (Protig) do Hospital de Clínicas em Porto Alegre, um dos que são considerados referência no assunto no Brasil.
Dito isso, Rosito lembra que a transexualidade — ou a não identificação com o próprio corpo — é totalmente independente da orientação sexual da pessoa. Também é diferente do travesti, que embora se identifique com o sexo oposto, aceita a genitália de seu próprio corpo.
De volta aos bloqueadores, esses medicamentos impedem, temporariamente, o desenvolvimento do corpo ao suprimir a liberação de estrogênio (hormônio relacionado à ovulação e a características femininas) ou testosterona (hormônio masculino), que começam a ser produzidos em maior quantidade durante a puberdade.
São esses hormônios que orientam o corpo no desenvolvimento de seios, menstruação, pelos faciais e voz mais grossa, por exemplo.
O Gids britânico informa que, ao “pausar” a puberdade, dá-se às crianças e adolescentes com disforia de gênero mais tempo para avaliar suas opções — sem a necessidade de passar pelo estresse adicional de vivenciar mudanças em um corpo em um gênero com o qual não se identificam.
Quando elas param de tomar os bloqueadores, a puberdade é retomada — embora Rosito destaque que pode haver sequelas, a depender da idade em que se iniciou o tratamento.
Os dados disponíveis ainda são poucos no Reino Unido, mas mostram por enquanto que a maioria dos jovens prefere manter a ingestão de bloqueadores, e muitos acabam, depois dos 16 anos, aderindo também a hormônios que ajudem a mudar de sexo.
Ao paralisar a puberdade e o desenvolvimento de características específicas de cada sexo, essas pessoas que aderem à terapia de mudança de sexo evitam ter de passar por tratamentos cirúrgicos mais invasivos (por exemplo, de remover seus seios via mastectomia, caso queiram mudar do sexo feminino para o masculino).
Por que esses remédios causam polêmica?
O processo legal movido contra a Tavistock no Reino Unido foca na questão de se crianças e adolescentes são capazes de dar consentimento informado ao tratamento com bloqueadores, ou seja, se são plenamente capazes de tomar essa decisão.
Durante a puberdade, hormônios estão relacionados a mudanças não só no corpo, mas também no cérebro.
O Gids informa que ainda não se sabe se bloqueadores de puberdade “alteram o curso de desenvolvimento do cérebro adolescente” e explica que os efeitos piscológicos desses medicamentos ainda não são plenamente conhecidos.
Dados preliminares de um estudo mostram que algumas pessoas que ingeriram esses medicamentos relataram ter tido mais pensamentos suicidas e de automutilação. Mas essas pessoas não souberam especificar se esses pensamentos eram causados pelos remédios ou por fatores externos.
Além disso, o estudo foi alvo de críticas por questões técnicas, mas alimentou o debate no Reino Unido.
O NHS afirma que as informações disponíveis sobre os impactos de longo prazo dos bloqueadores são “limitadas”.
Embora eles sejam considerados um tratamento “totalmente reversível”, já que a puberdade pode ser retomada, os medicamentos podem ter efeitos de longo prazo — por exemplo, o Instituto Britânico de Saúde e Excelência em Cuidados (Nice, na sigla em inglês) lista a queda na densidade óssea como um possível efeito colateral do triptorelin, a droga usada pelo Gids.
O processo judicial em andamento alega, ainda, que bloqueadores de puberdade podem afetar a fertilidade e o funcionamento dos órgãos sexuais dos pacientes, embora não haja provas conclusivas sobre isso.
O que mudou no Brasil?
Em 9 de janeiro, o Conselho Federal de Medicina (CFM) publicou uma resolução ampliando o acesso ao atendimento de pessoas com incongruência de gênero e permitindo que o tratamento hormonal cruzado (ou seja, tomar hormônios que ajudem na transição de gênero) agora seja feito a partir dos 16 anos — antes, era aos 18 anos.
Procedimentos cirúrgicos, porém, só podem ocorrer depois dos 18 anos, e pacientes têm de ter passado por “no mínimo um ano de acompanhamento por uma equipe multiprofissional e multidisciplinar”. Essa equipe incluiria, no mínimo, psiquiatra, endocrinologista, ginecologista, urologista e cirurgião plástico.
Segundo o CFM, a resolução é fruto de mais de dois anos de análises e discussões, que levaram em conta “além de aspectos éticos e legais, diferentes estudos clínicos sobre o assunto”.
Para o urologista Tiago Rosito, a resolução é benéfica ao permitir atenção médica a pessoas que desde cedo se identificam como transgênero “e evitar que elas passem por grande sofrimento ou mesmo caiam em mãos erradas” de tratamentos irregulares. “É seguro e melhor começar mais cedo.”
Dito isso, Rosito destaca que o Brasil tem estrutura insuficiente para lidar com toda a demanda por acompanhamento médico especializado. No Hospital de Clínicas de Porto Alegre, onde ele atua, são atendidos pacientes de todo o país. “Estamos sobrecarregados até o pescoço”, diz o médico. Ali, diz ele, foram operados 250 pacientes transgêneros nos 25 anos de existência do Programa de Identidade de Gênero.
Em meio a isso, outras situações se espalham no Brasil. Em Uberlândia (MG), em 2017, um garoto de 12 anos que se identificava como menina ganhou na Justiça o direito de interromper sua puberdade, depois de um laudo de uma equipe médica confirmar sua transexualidade.
Em São Paulo, o tema é discutido na Assembleia Legislativa estadual. Uma emenda da deputada Janaina Paschoal (PSL) a um projeto de lei da deputada Erica Malunguinho (PSOL) propõe proibir a terapia hormonal a jovens transgênero com menos de 18 anos na rede pública e privada do Estado.
E o que está em discussão no Reino Unido?
A enfermeira por trás do processo judicial britânico, Sue Evans, trabalhou no Gids uma década atrás e pediu demissão dizendo-se preocupada com o fato de crianças e adolescentes que querem fazer a transição para um gênero diferente do seu estavam recebendo medicamentos bloqueadores de puberdade.
Na opinião de Evans, essas receitas não seriam precedidas de avaliações psicológicas adequadas — algo que o Gids nega.
“Eu costumava me preocupar quando (bloqueadores) eram dados a jovens de 16 anos. Mas agora esse limite é ainda menor, e crianças de talvez 9 ou 10 anos têm acesso a um tratamento completamente experimental cujas consequências de longo prazo não são conhecidas”, afirmou Evans.
A mãe que também participa do processo, identificada apenas como A., tem uma filha de 15 anos que se apresenta como menino e está na lista de espera do Gids. Ela se disse preocupada com a possibilidade de sua filha (que é do espectro autista) receber drogas com efeito duradouro sobre seu desenvolvimento físico.
“Tenho medo que olhem para a idade dela e digam, ‘ela diz que é isso o que ela quer, então vamos colocá-la em tratamento médico'”, diz A. à BBC News.
“E como a comunicação do que ela sente por dentro é um pouco diferente por causa do espectro autista, temo que o que ela diz e o que ela quer dizer sejam coisas muitas vezes diferentes. Quando somos adolescentes, o que achamos que vai nos fazer feliz não necessariamente vai nos fazer feliz.”
A Tavistock não comentou o processo judicial, mas afirmou que o Gids é “um dos serviços do tipo mais estabelecidos no mundo, com reputação internacional de ser cauteloso e atencioso. Nossas intervenções clínicas são ditadas por padrões nacionais. Nosso serviço é monitorado de perto pelo NHS, tem um alto nível de satisfação e foi avaliado como bom pela (agência reguladora) Comissão de Qualidade em Atendimento”.
Em seu site, o Gids informa ainda que, para menores de 16 anos, busca o consentimento dos jovens e de ao menos um dos pais. “Tentamos nos assegurar de que os jovens e a família tenham um bom entendimento das informações existentes e das intervenções (médicas) que estão solicitando, incluindo tratamentos hormonais.”
“Também levamos em conta as questões emocionais e sociais envolvendo o tratamento. Ajudamos a avaliar os benefícios e riscos de qualquer tratamento solicitado e levamos em conta as alternativas ao tratamento proposto (inclusive a opção de não se fazer nenhum tratamento).” O serviço agrega que, para crianças que possam ter dificuldades cognitivas, é primeiro avaliada a sua capacidade de decisão antes de se iniciar o tratamento.
Para o urologista brasileiro Tiago Rosito, o debate britânico “é mais uma questão bioética do que científica, o que a torna mais complexa”.
“O fato é que não posso bloquear a puberdade sem ter certeza absoluta (de que o paciente é transgênero)”, diz Rosito. “Por isso é preciso vê-lo da maneira mais neutra possível, deixando de lado questões religiosas ou sociais que causam uma névoa. A questão é se cercar dos melhores especialistas e estrutura (para avaliar cada caso).”
Ele destaca, porém, “que em boa parte das vezes, com profissionais especializados e incluindo psiquiatras infantis, é possível identificar desde cedo” que uma criança é transgênera. “Claro que para isso é preciso descartar outras possibilidades e sempre levar em conta que um tratamento que acabe em cirurgia (de mudança de sexo) é praticamente sem volta.”