06 de Outubro de 2019
A americana Kayla Edwards tinha 16 anos de idade quando ouviu de uma médica que nunca poderia engravidar. A então adolescente descobriu que havia nascido sem o útero.
“Na época, a médica que me atendeu nem sabia o nome do que eu tinha. Ela saiu do consultório e voltou com um livro médico enorme (para pesquisar)”, diz Kayla à BBC News Brasil.
Hoje, aos 28 anos, Kayla sabe que é portadora da síndrome de Mayer‐Rokitansky‐Kuster‐Hauser (MRKH), que afeta uma em cada 4,5 mil mulheres ao redor do mundo e é caracterizada pela falta total ou parcial do útero.
Doze anos depois de receber o diagnóstico de que nunca poderia dar à luz, ela e o marido, Lance, comemoraram o que consideram um milagre: o nascimento de sua filha, Indy Pearl.
Kayla é uma das 20 mulheres que receberam transplante de útero como parte de uma pesquisa clínica realizada pelo Baylor University Medical Center, centro médico em Dallas, no Texas.
Indy Pearl nasceu em 10 de setembro, em parto por cesariana, pesando 2,8 kg. Ela é o quarto bebê nascido desde o início da pesquisa clínica, em 2016. Outras seis pacientes já estão grávidas.
“Ela é maravilhosa, estamos completamente apaixonados. Ela tem apenas três semanas, e eu continuo tendo de me beliscar para acreditar que ela está mesmo aqui, que é real, porque nós lutamos tanto por ela”, conta Kayla. “Ainda não acredito que consegui ser mãe.”
‘Enfrentamos tanta coisa, e tudo valeu a pena’
Ao contrário dos pais dos dois primeiros bebês nascidos durante a pesquisa clínica do Baylor, que preferiam permanecer anônimos, Kayla e Lance Edwards decidiram compartilhar sua história.
Nesta semana, Kayla e Peyton Meave, que há três meses deu à luz a menina Emersyn Rae, o terceiro bebê nascido após transplante de útero no Baylor, participaram de uma entrevista coletiva em que falaram pela primeira vez sobre sua experiência publicamente.
Kayla diz à BBC News Brasil que deseja que sua história possa dar esperança a outras mulheres que lutam contra a infertilidade.
“Muitas mulheres que sofrem de MRKH não querem falar sobre isso. Muitas pessoas que sofrem com infertilidade simplesmente não querem falar. Eu queria quebrar esse tabu”, afirma.
“Nós enfrentamos tanta coisa, e tudo valeu a pena, para ter nossa filha no final. E se nossa história puder inspirar alguém que acaba de ser diagnosticada, que está se sentindo sozinha, isso significa muito para mim.”
A cirurgiã ginecologista Liza Johannesson, diretora médica de transplantes de útero do Baylor University Medical Center, ressalta a importância que esses depoimentos têm para mulheres que enfrentam o mesmo problema.
“Elas precisam ver alguém como elas, que superou a infertilidade e conseguiu dar à luz. Assim, sabem que não estão sozinhas e que há esperança para elas se quiserem se tornar mães”, diz Johannesson à BBC News Brasil.
Sensação de isolamento
Kayla lembra que, quando recebeu o diagnóstico, não tinha nenhuma informação sobre a MRKH. “Eu me senti tão sozinha e isolada. Foi um período muito difícil na minha vida, em que me sentia tão diferente.”
“Foi só quando fiquei mais velha e comecei a pesquisar na internet que encontrei outras pessoas como eu”, relata.
Na época do diagnóstico, ela chegou a questionar a médica sobre a possibilidade de um transplante de útero. “Ela meio que riu e disse ‘Não, isso nunca vai acontecer’.”
Em 2014, ela e Lance consultaram um especialista em fertilidade e novamente ouviram que um transplante de útero era impossível. Mas naquele mesmo ano, médicos na Suécia anunciaram o primeiro transplante de útero bem-sucedido com o órgão de uma doadora viva.
Quando soube do sucesso do transplante na Suécia, que resultou em gravidez e nascimento, Kayla pensou que esse avanço poderia chegar aos Estados Unidos em cinco ou dez anos. Não levou tanto tempo.
Em fevereiro de 2016, a Cleveland Clinic, centro médico no Estado de Ohio, foi o primeiro no país a realizar um transplante de útero, com o órgão de uma doadora morta. Esse transplante resultou em complicações, e o útero acabou sendo removido.
Alguns meses depois, o Baylor University Medical Center começou a realizar seus primeiros transplantes. Em novembro de 2017 nasceu o primeiro bebê, resultado de um transplante com o útero de uma doadora viva.
No Brasil, uma menina nascida em dezembro de 2017 foi o primeiro bebê no mundo nascido após um transplante com o útero de uma doadora morta, realizado por médicos no Hospital das Clínicas de São Paulo.
Demissão e mudança de cidade para fazer tratamento
Quando ouviram falar da pesquisa clínica no Baylor, Kayla e o marido decidiram enviar um email. Eles foram então convidados a ir até Dallas para realizar uma série de exames e determinar se ela seria uma boa candidata a receber um transplante. Nessa primeira fase, apenas 10 mulheres foram selecionadas, entre centenas de candidatas.
“Um mês depois, nos telefonaram e perguntaram: ‘O que vocês acham de se mudar para o Texas?'”, conta Kayla. “Nós vendemos nossa casa, no Estado de Washington, pedimos demissão de nossos empregos e nos mudamos.”
Kayla recebeu o transplante em agosto de 2017. No início deste ano, engravidou por meio de fertilização in vitro. “Eu tive uma gravidez muito boa, me senti ótima. Foi muito emocionante, nunca pensei que ficaria grávida, tentei aproveitar cada momento”, relata.
Johannesson afirma que, até agora, nenhuma das pacientes que receberam transplante de útero no programa do Baylor teve complicações na gravidez.
“Todas as gestações foram normais”, ressalta a médica. “Os bebês estão ótimos. Nasceram com o tamanho certo, sem problemas, e estão se desenvolvendo normalmente.”
Sucesso
Um transplante uterino é considerado bem-sucedido quando a paciente que recebeu o órgão dá à luz uma criança saudável. Esse é o resultado final de um longo processo que se inicia antes do transplante, com a coleta de óvulos da paciente. Os óvulos são fertilizados, e os embriões, congelados.
Após receber o útero e o colo uterino da doadora, a paciente precisa tomar medicamentos imunossupressores para evitar que o órgão transplantado seja rejeitado pelo organismo. Algumas semanas depois, a paciente tem sua primeira menstruação. Após cerca de seis meses, os embriões são implantados no útero. Se o procedimento for bem-sucedido, a paciente fica grávida.
Segundo Johannesson, atualmente o programa estabelece um limite de no máximo duas gestações para cada paciente. Depois disso, o útero é retirado, para que a paciente possa parar de tomar os remédios imunossupressores.
Apesar de representar uma esperança para mulheres que sempre ouviram que nunca poderiam engravidar, o transplante uterino permanece inacessível para a maior parte da população, mesmo após o sucesso de programas como o do Baylor.
As participantes da pesquisa clínica tiveram todas as despesas pagas. Mas pacientes comuns teriam de desembolsar uma quantia estimada entre entre US$ 200 mil e US$ 500 mil (cerca de R$ 830 mil a R$ 2 milhões). O procedimento não é coberto por planos de saúde nos Estados Unidos.
Johannesson afirma que o hospital vem buscando negociar com planos de saúde e também atrair doações.
‘Espero poder compartilhar esse milagre que ela me ajudou a trazer ao mundo’, diz Kayla sobre doadora
Além das pacientes, a pesquisa clínica do Baylor envolveu diversas doadoras, selecionadas entre centenas de voluntárias. Uma delas, a enfermeira Heather Bankos, de 31 anos, disse à BBC News Brasil em entrevista em junho que a vontade de ajudar outras mulheres a passar pela experiência da gravidez e da maternidade a motivou a doar o útero para uma desconhecida.
Kayla não sabe quem foi sua doadora. O programa não permite que doadora e paciente se conheçam antes do nascimento do bebê. “Nós trocamos algumas cartas, eu contei que minha filha tinha nascido”, diz Kayla.
Kayla e Lance planejam tentar uma segunda gravidez, já que ela permanece com o útero transplantado. Só poderão saber quem foi a doadora depois disso.
“Espero poder conhecê-la algum dia, e mostrar minha filha. E compartilhar esse milagre que ela me ajudou a trazer ao mundo”, diz Kayla.
Alessandra Corrêa De Winston-Salem (EUA) para a BBC News Brasil