16 de Setembro de 2019
No bar, no supermercado, na hora do almoço, grande parte da Argentina faz a mesma pergunta: “Quanto está o dólar hoje?”. A resposta é capaz de fazer o país inteiro tremer, castigado por repetidas crises que tiveram a moeda dos Estados Unidos como protagonista e a introduziram em um círculo vicioso econômico e cultural que parece não ter fim.
Assim como o tango, o futebol e o churrasco, o dólar foi conquistando, década após década, um posto no pódio das tradições do país sul-americano, obcecado com uma moeda que não é a sua mas que a adotou como o melhor instrumento para conservar as divisas e fugir do sempre frágil e desvalorizado peso.
Se a moeda americana se valoriza, especialmente de maneira abrupta, basicamente duas coisas acontecem na Argentina: enquanto a economia nacional, sustentada em pesos, se debilita e a inflação sobe, os dólares daqueles que podem economizar se mantêm a salvo.
“Temos aversão ao peso, não queremos ter pesos no bolso”, conta um dos tantos argentinos que transitam pela chamada na região central de Buenos Aires onde estão a maioria dos bancos e casas de câmbio da cidade.
Às 10 da manhã, quando esses estabelecimentos levantam as portas, principalmente em tempos de recessão como o atual, a incerteza inunda o país durante as cinco horas de atividade dos mercados, pois, em dias mais críticos, podem ocorrer mudanças bruscas nas taxas de câmbio.
Até os canais de televisão deixam ao vivo uma pequena janela para que os espectadores possam acompanhar em tempo real a evolução cambial.
“Na Argentina, saber a cotação do dólar de quatro anos atrás pode ser uma pergunta que te faz ganhar um concurso na TV”, relata à Agência Efe, a socióloga Mariana Luzzi, que, junto com o colega Ariel Wilkis, estudou o comportamento “passional e nacional” dos argentinos com a divisa americana.
No livro “O dólar. História de uma moeda argentina (1930-2019)”, os pesquisadores fazem um intenso repasse sobre as circunstâncias que tornaram a divisa “inseparável” do país, onde diversas canções, obras de teatro, livros e filmes deixaram evidente essa relação.
Também não faltam expressões populares e um extenso vocabulário temático: “dólar blue” é aquele vendido e comprado no mercado negro; se conhece por “arbolitos” as pessoas que comercializam ilegalmente diferentes divisas em plena rua e as “cavernas” são aqueles locais escondidos destinados à mesma finalidade.
A origem dessa conflituosa história de amor argentina com o dólar nos leva a 1931, ano que o presidente José Félix Uriburu impôs os primeiros controles às taxas cambiais para resistir ao impacto da crise mundial ocorrida no final da década anterior, quando a exportação de carnes e grãos deixou de ser suficiente para obter as divisas necessárias para o funcionamento da economia.
“Essa naturalização que temos hoje na economia argentina da moeda americana é o resultado de um processo de um lento amadurecimento, ao longo de muitos anos. Às muitas crises vividas foram acumulando várias camadas que fizeram com que o dólar esteja assim tão presente na vida cotidiana”, enfatiza Luzzi.
As idas e vindas financeiras fizeram com que os sucessivos governos democráticos e ditatoriais adotassem medidas que não foram capazes de manter uma divisa local forte.
Desde 1881, quando se criou o “peso moeda nacional”, o país contou com o peso lei (1970), o peso argentino (1983), o austral (1985) e, após o maior ciclo de hiperinflação da história recente nacional, novamente o peso.
O “plano mágico” mais lembrado para estabilizar a moeda e aplacar o consequente aumento de preços chegou em 1991, quando o então ministro da Economia, Domingo Cavallo, anunciou a Lei da Conversibilidade, que, durante uma década, equiparou o valor do peso ao do dólar: a conhecida fórmula do “um por um”.
A inflação ficou controlada, mas não demorou para que a bomba desse sistema artificial explodisse.
Com o chamado ‘corralito’ bancário da crise de 2001, que limitava a retirada de dinheiro dos bancos, o país suspendeu a conversibilidade e recuperou um peso independente, que sucessivos presidentes trataram de controlar mediante restrições.
A última dessas estratégias veio há apenas alguns dias, quando o presidente Mauricio Macri, em meio a um novo caos financeiro, se viu obrigado a impor medidas para evitar a constante fuga de capitais do país.
Independente da medida estratégica adotada pelo governo, a população que caminha pelo centro de Buenos Aires tem a própria forma de lidar com o assunto e, claro, também tem ideias para contornar os problemas da economia, como se fossem ministros.
“As pessoas tentam se proteger com uma moeda sabendo que, passada a crise, terão mais poder aquisitivo”, afirma Santiago.
Já Norma, além de culpar aos maus governos e a sociedade por os eleger, acrescenta outra teoria.
“O argentino não é nacionalista”, conclui, na tentativa de explicar esta paixão pelo dólar, em um momento crucial onde o país inteiro almeja o surgimento de novas ideias que possam dar uma reviravolta na difícil relação com o dinheiro, Rodrigo García.
Com informação da efe.com