Jefferson Drezett é responsável pelo serviço de aborto legal do hospital Pérola Byington, em São Paulo. Lá, uma equipe de assistentes sociais, psicólogos, ginecologistas e outros profissionais atende mulheres vítimas de violência sexual e, nos casos de gravidez não desejada, as guia através da delicada opção pelo aborto.
O médico, crítico ferrenho da interferência da religião e da ideologia conservadora na liberdade de escolha da mulher, foi destacado no dossiê Onde as mulheres não tem vez, um panorama da situação do aborto no Brasil que saiu na edição de maio da GALILEU. Aqui, você confere a conversa completa que tivemos com ele.
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Qual parcela das mulheres estupradas acaba grávida?
Entre 1% e 6% das mulheres em idade reprodutiva, ou seja, que já tiveram a primeira menstruação, mas não a última, e que não usem um método anticoncepcional que independa do agressor, como DIU, laqueadura ou pílula. No entanto, o número de casos de estupro é tão grande que no final esses 6% se tornam uma enorme quantidade de gestações. É diferente com as mulheres que são estupradas frequentemente.
A paciente mais nova que nós temos tem dez anos de idade, e a mulher mais velha que engravidou de estupro, 47. Há concentração de casos principalmente entre 15 e 25 anos de idade. O que não quer dizer que o perfil de quem sofre violência sexual é esse, estamos com um viés, o viés da gravidez. Hoje, mais da metade dos casos que o hospital atende são estupros de crianças. Só não há uma taxa de gravidez maior , portanto, porque a maior parte das crianças não possui capacidade fisiológica de ter uma gravidez. Por isso não podemos dizer que o perfil da vítima de estupro é o mesmo perfil da vítima de estupro que resulta em gestação.
Há uma mudança no perfil do agressor entre as mulheres que são maiores de idade e as crianças que vocês atendem no hospital? O agressor costuma ser uma pessoa conhecida, no caso das crianças?
Com crianças, a maior parte dos casos é praticada por pessoas conhecidas, e, do total desses conhecidos, 80% ou 90% faz parte do núcleo familiar. Pai, padrasto, irmão, tio materno, paterno, avô, cunhado etc. Há também um grupo muito grande de pessoas que não são do núcleo familiar, mas que têm acesso privilegiado à rotina da criança. Isso torna muito difícil a identificação e interrupção do abuso.
Muitas vezes você só descobre que uma criança foi abusada quando surge uma DST ou quando ela aparece grávida. Há um estudo que publicamos em 2006 ou 2004 em que descobrimos que 60% dos casos de abuso sexual de adolescentes demoraram um ano para ser descobertos, e 10% desses casos demoraram mais do que cinco anos.
E qual é o perfil do agressor no caso da mulher adulta?
O agressor desconhecido é comum, mas não costumamos dar atenção ao abuso sexual praticado pelo parceiro íntimo, seja pela pessoa com que ela se relaciona no momento, seja por alguém com quem ela deixou de ter um relacionamento. Em países como Peru e Nigéria, 60% das mulheres declaram que pelo menos uma vez na vida foram obrigadas a realizar o ato sexual contra sua vontade praticado por um parceiro, o que é um número realmente extraordinário. Se o país for Sérvia e Montenegro ou Japão, esse número cai para 6%, o que ainda é muito alto.
Não há um país em que a mulher esteja protegida. No Brasil, aproximadamente 15% das mulheres declaram ter sofrido alguma forma de abuso ou violência sexual praticada pelo parceiro íntimo. Há uma tolerância histórica muito maior ao estupro praticado pelo parceiro íntimo.
As mulheres tem alguma dificuldade em identificar o abuso praticado no âmbito doméstico com a definição de estupro?
Elas têm, essa é uma pergunta interessante. Em uma pesquisa dessas, a ideia é fazer uma pergunta que não use as palavras “violência” ou “estupro”, mas que descreva o que caracteriza essa situação. São postas situações em que a mulher possa dizer se algo aconteceu ou não independente dela chamar aquilo de estupro, mas que são mundialmente consideradas atitudes que tipificam um crime sexual.
Conforme a cultura, porém, há certas práticas que, óbvio que não é culpa delas, podem ser aceitáveis. Isso está naturalizado dentro de um processo histórico de violência de gênero. Certas formas de violência são percebidas, até pela própria mulher, como de menor importância. No norte da Nigéria, a média de idade de casamento das meninas é de onze anos. Naquela região é culturalmente aceito. Se você tivesse uma filha de onze anos de idade, você acharia razoável que ela se casasse com um homem adulto e tivesse relações sexuais com ele?
Qual é a sua opinião sobre o novo projeto de lei que obriga as vítimas de estupro a fazer B.O. e exame de corpo de delito para receber autorização para o aborto?
É uma obscenidade misógina. Eu entendo o seguinte, a pessoa que não tem conhecimento sobre abuso sexual não tem direito de se meter nessa área. Eu vou lhe dar um exemplo do dano que colocar o atendimento policial à frente do atendimento médico provoca. Se uma mulher for ao hospital e nas primeiras doze horas após o estupro receber anticoncepção de emergência, a eficácia do método é de 99,5%. Ou seja, vai falhar em 0,5% dos casos. Mas se elas chegarem nas segundas doze horas do primeiro dia, a taxa de eficácia cai para 95%. É praticamente 5% de acréscimo de risco de gravidez para as mulheres que forem obrigadas a fazer boletim de ocorrência e não receberão medicação na hora certa.
Já o risco de pegar uma DST bacteriana, como sífilis, gonorreia, clamídia ou cancro mole, é algo como 30%, 32%. Não bastasse isso, há o risco de infecção por HIV, que está na casa de 0,8%, e o risco das hepatites virais, B e C, também em torno de 0,8%. E existe ainda o risco de danos genitais ou danos físicos muito severos. Mulheres morrem nessas circunstâncias, inclusive crianças.
No hospital nós usamos antibióticos, anticoncepção de emergência e antirretrovirais para evitar o HIV, ou seja, há um conjunto de medidas que devem ser aplicadas aos quais essas mulheres simplesmente não teriam mais acesso. Portanto, não é saudável, não é humano, não é concebível, não é justificável que qualquer medida burocrática ou administrativa seja colocada como uma imposição antes do tratamento médico. É evidente que é mais importante ir ao hospital que ir à polícia. Nem um bandido baleado tem que passar por isso.
Também há um imenso risco e constrangimento em levar a situação à polícia, não?
Um levantamento provou que, na América Latina, a cada dez mulheres estupradas, só uma ou duas irão contar o que aconteceu a alguém, seja ao serviço médico, seja ao serviço policial. A maior parte das mulheres que sofre um estupro tem uma enorme dificuldade em revelar o ocorrido, e sofre silenciosamente sem buscar a ajuda de ninguém. É uma situação extremamente íntima e pessoal, o constrangimento é imenso. Já é difícil falar com alguém próximo a você o que aconteceu, imagina falar para a polícia, para um médico que ela nunca viu na vida. Não é fácil.
Muitas mulheres, quando sofrem o estupro, são ameaçadas de morte se forem à polícia.Você acha que uma mulher que sofreu um estupro nessas circunstâncias vai à polícia colocar a vida dela ou de um filho dela em risco apenas para ter acesso a um hospital?É claro que não. Portanto, o que vai acontecer? Ela não vai procurar a polícia, não vai conseguir atendimento médico e todos aqueles riscos não receberão atendimento.
Há casos registrados de médicos que se negaram a realizar um aborto, alegando objeção de consciência, em situações em que não havia outro profissional no mesmo município ou região qualificado para o procedimento. Ele estava coberto por esse direito?
Não, não estava coberto pelo direito. Um médico pode se negar, mas há exceções. A primeira situação é em casos de emergência. Você não pode dizer que não vai atender um atropelado só porque você não gosta de atender atropelados.
Uma segunda situação é se não houver outro médico para realizar o procedimento. Aí o direito do paciente se sobrepõe ao direito de objeção de consciência. Portanto, se só há um ginecologista no local, ele terá de fazer o aborto, goste ele ou não, seja qual for a religião dele, e se ele se negar a fazer ele deve sofrer as sanções legais e penais cabíveis à situação de omissão de socorro. No Conselho Federal de Medicina ele também sofreria um processo administrativo.
O aborto clandestino é, em geral, bastante perigoso. Mas e um aborto seguro? Ele é tão seguro quanto ou mais seguro que a média dos procedimentos cirúrgicos?
O aborto pode ser as duas coisas. Quando feito de maneira legal, ética e segura, o risco para a mulher é extremamente baixo e é uma cirurgia muito segura. O risco é ínfimo. A Organização Mundial da Saúde (OMS) classifica o aborto em seguro e o inseguro. O aborto inseguro é o praticado por uma pessoa, médico ou não, que não possui o preparo correto, a capacitação adequada para realizar aquele procedimento. Também é o aborto realizado em um espaço físico que não reúna as condições de higiene e prevenção de infecções e os cuidados hospitalares necessários. Ou as duas coisas.
Quando o aborto é praticado nessas circunstâncias, é responsável pela morte de 47 mil mulheres por ano no mundo, segundo estimativa da OMS. É o equivalente a morrer uma mulher a cada dez minutos. A distribuição desses abortos inseguros é interessante. 98% são praticados em países em desenvolvimento. O aborto não é um problema para a Alemanha, Áustria, Inglaterra, EUA… Não é um problema nesses países. Ele é um problema para países que o proíbem, e em que, não por coincidência, ele se torna clandestino, sem nenhum tipo de controle sanitário.
Além da morte de 47 mil mulheres, estima-se hoje que cinco milhões de mulheres por ano no mundo sofrerão alguma sequela reprodutiva por causa de um aborto que não as matou. Se todos esses abortos inseguros fossem feitos de maneira segura, nós iríamos para algo entre 80 e 100 mortes por ano.
O aborto seguro é extremamente seguro, e lhe digo mais, se ele for feito no comecinho da gravidez, ele pode ser até dez vezes mais seguro que um aborto natural. O aborto natural não é tão grave. É lógico que ele pode se complicar e trazer alguma consequência grave para a mulher, mas os números oficiais americanos são o seguinte: o risco de uma mulher ter uma complicação grave em um aborto natural é de um caso em cada 100 mil. Para uma gestação abaixo de onze semanas, uma gestação inicial, com complicação grave por aborto legal, esse número cai de um em 100 mil para um em um milhão.
A desigualdade social tem um papel importante na segurança de um aborto clandestino, não?
Quando o aborto é feito de maneira insegura, prevalece uma desigualdade enorme. As mulheres que morrem por aborto no Brasil não são as de classes socioeconômicas favorecidas, são as mulheres pretas, pobres e da periferia, são as mais vulneráveis. O Estado brasileiro as vê morrer todos os dias e não demonstra nenhuma sensibilidade em relação a elas.
Já sei a resposta, mas o senhor é favorável à legalização do aborto?
Claro! Evidente! Mas precisamos tomar muito cuidado com essa pergunta, ela tem sido feita de maneira maliciosa. Perguntamos às pessoas se elas são contra ou a favor do aborto. É a mesma coisa que você me perguntar se eu sou contra ou a favor do câncer de mama. É claro que eu sou contra! O aborto em si não é uma experiência positiva para a mulher em nenhuma circunstância. Se a mulher queria muito aquela gestação e perdeu, é uma experiência triste. Se ela tem que decidir por fazer um aborto para salvar a própria vida, grávida do marido ou do namorado, imagine a angústia dessa mulher. Imagine o drama de uma mulher que tem que interromper uma gestação oriunda de um estupro.
É um falso dilema ser contra ou ser a favor.Essas mulheres, que são muitas vezes apontadas como irresponsáveis por estarem fazendo um aborto, são mulheres que pensaram muito a respeito, e que estão tomando, diante de uma situação adversa, uma posição que na verdade é a mais responsável possível. É muito pior obrigar uma mulher a manter uma gestação contra sua vontade. Eu queria que o aborto fosse algo sempre permitido, sempre seguro e raramente necessário. O que eu gostaria que acontecesse com esse país, e acho que vou terminar minha carreira sem ver, é que ele caminhasse na direção da Holanda.
A Holanda, hoje, é o país que tem a maior liberdade possível do ponto de vista legal para uma mulher realizar um aborto. É também o país que oferece o acesso mais fácil ao aborto quando ela deseja. E, olha só, que coisa paradoxal, a Holanda é o país do mundo em que menos abortos são feitos. Então essa ideia, baseada na ignorância, de que quando é permitido elas saem fazendo abortos, fica entre o patético e o risível. Não faz sentido.
Se você perguntar às pessoas se uma mulher que faz o aborto deve ser presa, a maior parte das pessoas dirá que não. Então, qual é o sentido de haver uma lei que criminaliza a mulher em caso de aborto? A lei, na prática, não é aplicada. É altamente eficaz para matar mulheres. E contraria um fenômeno social que é entendido de maneira completamente diferente nos países desenvolvidos. Ela obriga a mulher a buscar o atendimento clandestino e inseguro e, acrescento, pouco se importa com o feto. Perdemos, afinal, 800 mil fetos por ano. Não me venham dizer que a lei existe para proteger o feto por que a lei não está protegendo feto nenhum e eu não vejo nenhum movimento desses parlamentares evangélicos fundamentalistas religiosos querendo punição para as mulheres, a única coisa que se quer é manter o status quo.
Como o senhor vê a influência da religião na aprovação de medidas favoráveis à vida das mulheres?
Não dá para entender a cegueira, o desvio de olhar, a insensibilidade tanto do executivo quanto do legislativo brasileiro em manter a situação como está apenas para atender o desejo e a convicção religiosa. A visão religiosa é imposta a todos. Eu, que sou ateu, fico na miséria.
Para grande parte dos religiosos a vida do feto é mais importante que a vida humana. Se o médico e a mulher são excomungados por fazer o aborto, também deveriam ser excomungados os que matam um recém-nascido, mas não são. Algo me diz que, para a igreja, o feto é mais importante que o recém-nascido. Há algo além do compreensível, tratamos uma célula com um grau de respeito que não damos à raça humana como um todo e principalmente à mulher, que em muitas religiões não é autônoma, é apenas um pedaço de uma costela de um homem, um subproduto do mundo patriarcal masculino.
E com isso vão morrendo pessoas. E como são pessoas pobres, pretas e da periferia, tanto faz a morte dessas mulheres, estamos aqui há um bom tempo conversando, devem ter morrido umas cinco ou seis enquanto a gente conversa. E que diferença vai fazer, se não são as pessoas próximas da gente?
Por isso, por essas e outras razões, é claro, eu sou completamente favorável a respeitar a autonomia das mulheres. Elas decidem e é possível ou não, correto ou não manter uma gestação seja quais forem as circunstâncias.
Com supervisão de Cristine Kist.