Contra obstáculos que o afastam das raízes, ritmo baiano ganhou o mundo
Pixinguinha (centro), recebe homenagem no Rio de Janeiro em 1968
Por Nei Lopes, sambista, escritor e autor, entre vários outros livros, da Enciclopédia Brasileira da Diáspora Africana (4ª ed., Selo Negro, 2011) — publicado na edição 79, de setembro de 2013
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A palavra “samba”, presente no cotidiano brasileiro desde, pelo menos, o século XIX, quando era definida simplesmente como “um tipo de dança de negros”, tem inegável origem africana. Arte eminentemente popular, aos poucos foi sendo estudada e compreendida. Na década de 1940, já era vista como “dança de salão, aos pares, com acompanhamento de canto, em compasso 2/4 e ritmo sincopado”, como definiu o poeta e folclorista Mário de Andrade. Finalmente, em 2001, o Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa trazia a informação de que “o nome designa, também, um tipo de canção popular de ritmo geralmente 2/4 e andamento variado, surgido a partir do século XX”.
Como a mostrar que o “samba” nasceu na África, o vocabulário da língua cokwe, do povo quioco, de Angola, registra um verbo samba, com o sentido de “cabriolar, brincar, divertir-se como cabrito”. Em outro idioma, o quicongo, também falado em parte do território angolano, uma palavra de grafia semelhante, sàmba, designa uma espécie de dança em que um dançarino bate contra o peito de outro.
Segundo as primeiras hipóteses, a origem do termo seria o verbo semba, do idioma quimbundo, também de Angola, que tem os sentidos de “rejeitar” e “separar”, em referência ao movimento físico produzido na umbigada, que é a característica principal das danças dos povos do grupo banto – do qual vieram cerca de dois terços dos africanos trazidos para o Brasil como escravos. Entretanto, a origem preferível talvez seja o outro sentido que tem o verbo semba no quimbundo: o de “agradar, encantar, galantear”. Pois no samba tradicional, a umbigada, real ou simulada, é, antes de tudo, o movimento corporal dirigido ao par, como convite para entrar na dança.
Os primeiros tempos
Antes de ser visto e definido como gênero de música “cultivada conscientemente”, segundo as palavras de José Ramos Tinhorão, um dos maiores teóricos da música popular brasileira, a designação “samba” se aplicava a qualquer estribilho batucado, de feição africana. De origens diversas, esses refrões ou coros vinham da Bahia, das fazendas do Sudeste, do Agreste nordestino etc. e eram difundidos principalmente a partir de comunidades negras.
Até que em 1916 o violonista e compositor Ernesto dos Santos, o Donga, registrou na Biblioteca Nacional a obra Pelo Telefone, chamando-a “samba carnavalesco”, a ser lançada no carnaval seguinte.
Naquele momento histórico, o poder dominante buscava, por diversos meios e razões, desafricanizar o corpo e a alma da nação brasileira. E, mesmo quando, mais tarde, o Estado o incluiu em seu projeto político, o samba foi sempre, expressa ou veladamente, objeto de ações e procedimentos tendentes a despojá-lo dos conteúdos e das características formais próprios de suas origens africanas.
É assim que, na década de 1930, no ambiente do teatro musicado, surge o samba-canção, de andamento lento, de melodia romântica e letra sentimental, mais ao gosto das elites, e talvez mais “limpo”, como requeriam as ideias de eugenia propagadas pelo racismo dito “científico”, menosprezando expressões afro-brasileiras.
Da mesma firma, uma vez iniciada a exploração econômica da atividade musical no País após a organização da indústria fonográfica, estabelece-se distinção entre o samba “do morro” e o “da cidade”. Nessa divisão, a obra criativa dos núcleos favelados, recém-constituídos e organizados em escolas de samba, passava a ser a matéria-prima que os compositores “do asfalto” transformavam em produto industrializado.
Mas os redutos negros conservavam, mesmo inconscientemente, numa reserva de talento e arte, importantes componentes de sua originalidade africana, tais como o ritmo da batucada, o padrão “pergunta/resposta” nos coros e solos do partido-alto (cantoria em desafio) e a luta-dança da pernada, espécie de jogo atlético derivado da capoeira angolana. E, mesmo sob condições muitas vezes adversas, nas décadas de 1930 e 1940 o negro Pixinguinha, genial compositor, instrumentista e arranjador, criava um repertório de “cenas africanas” que incluía sambas à moda antiga, como Benguelê, Iaô etc., mais tarde recriados pela cantora Clementina de Jesus.
A bossa nova
A expressão bossa nova marca o novo estilo de composição e interpretação do samba irradiado a partir da zona sul carioca no fim da década de 1950 e antes denominado “samba moderno”. O marco fundador do estilo são duas gravações do samba Chega de Saudade, de Tom Jobim e Vinicius de Moraes, em 1958, ambas tendo como diferencial o acompanhamento violonístico do músico João Gilberto.
Entre 1963 e 1964, o trabalho de Gilberto com o saxofonista americano Stan Getz impulsionou a difusão internacional da bossa nova a partir dos Estados Unidos. A semente já vinha do disco Jazz samba, gravado por Getz juntamente com o guitarrista Charlie Byrd, em 1962, ano do lançamento, no Brasil, de Garota de Ipanema. Em 1967, o hoje célebre samba de Tom e Vinicius era gravado em inglês por Frank Sinatra, marcando a definitiva expansão do estilo em uma dimensão jamais alcançada pela música popular brasileira.
Esse novo samba caracterizava-se principalmente por uma “batida diferente”, expressa em um tipo de divisão rítmica nada comum naquele momento, mas característica de um estilo, não de um gênero autônomo. Segundo o jornalista e escritor Ruy Castro, tratava-se de “uma simplificação extrema da batida da escola de samba”, como se dela fosse conservado apenas o tamborim. Reafirmemos que a bossa nova ganhou o mundo expressando sua indiscutível origem em títulos como Samba de Verão, Samba do Avião, Samba em Prelúdio, Samba Triste e Só Danço Samba.
Desafricanização
A bossa nova, então, propôs e efetuou uma simplificação do samba tanto para o “bem”, com o ritmo sendo assimilado por grandes músicos da cena internacional, como para o “mal”, com a africanidade se diluindo. Tão impactante foi essa diluição que, no próprio âmbito da nova onda, surge, a partir da parceria entre Vinicius de Moraes e o violonista Baden Powell, o subestilo de composição denominado “afro-samba”.
Com letras inspiradas em cantigas, rituais e outras formas tradicionais e versando sobre temas negro-brasileiros, os afro-sambas se caracterizam, segundo alguns teóricos, por melodias que encerrariam certo tom lamentoso, supostamente característico da música africana, o que carece de fundamento. A denominação, então – em que pese a beleza e a importância desse conjunto de obra – nos parece redundante: ou é questionadora das origens africanas do samba ou é, então, denunciadora da desafricanização sofrida por ele a partir de sua urbanização e de sua exploração comercial. Afro mesmo, nesse momento, é a já mencionada Clementina de Jesus, efetivo elo, no samba, entre a tradição ancestral e boa parte do que viria mais tarde, em obras como as de Candeia, Martinho, Luiz Carlos da Vila etc., além de interpretações como as de Clara Nunes e Roberto Ribeiro, entre outros.
As escolas
Na década de 1930, as escolas de samba se organizavam no sentido de assegurar um lugar para o samba no carnaval, e não para afirmar qualquer tipo de africanidade. Entretanto, elas acabaram por conservar, ao menos simbolicamente, alguns elementos da tradição, que aos poucos se vão diluindo. É o que se vê nas alas de “baianas”, no ritmo das baterias e em recorrentes enredos referentes, bem ou mal, à África.
Na relativa espontaneidade das rodas, as citações subsistem na batucada, revigorada a partir da década de 1980 nos chamados “pagodes de fundo de quintal”. Fora isso, elas permanecem congeladas no folclore, como no samba-de-roda do Recôncavo Baiano, reconhecido em 2004 como Patrimônio Imaterial do Brasil e, no ano seguinte, como Obra Prima do Patrimônio Oral e Imaterial da Humanidade. No âmbito da sociedade de consumo, entretanto, os ecos da Mãe África soam cada vez mais longínquos.
Fonte: Carta Capital