A música popular brasileira é rica em canções de protesto e em artistas que usaram a arte como militância, mas não há nenhum artista que possa ser comparado a Nina Simone nesse aspecto.
A cantora, cujo documentário biográfico concorreu ao Oscar e cuja história acaba de virar um filme estrelado por Zoe Saldana, abraçou a luta pelos direitos civis dos negros nos Estados Unidos e pagou caro pela sua escolha. Por causa da militância, sofreu boicotes da indústria fonográfica que impediram-na que alcançasse mais prestígio na carreira.
Exímia pianista, dona de voz poderosa e compositora talentosa, Simone poderia passar a carreira cantando sobre amores perdidos, mas preferiu caminhos mais arriscados e furiosos como a música “Mississippi Goddamn”, onde ela manda o estado sulista à “puta que o pariu”.
A canção de protesto foi composta em poucas horas, em meio às revoltas contra a morte de quatro meninas em um ataque da Ku Klux Klan na cidade de Birmingham, no Alabama.
“Escolhi refletir o tempo e as situações em que me encontro. Para mim, isso é o meu dever, e neste momento crucial de nossas vidas, quando tudo é tão desesperador, quando se tenta apenas sobreviver cada dia, não tem como não se envolver. (…) Não se tem escolha. Como ser artista e não refletir a época?”, pergunta Simone em uma das cenas do documentário “What Happened, Miss Simone”.
O questionamento, feito há uns quarenta anos e a sob a conturbada atmosfera social do Estados Unidos naquela época, ainda é válido hoje em dia, inclusive no Brasil.
Por aqui, mazelas endêmicas como o racismo, a desigualdade social e a violência urbana produzem bem menos revolta no meio artístico do que deveriam.
Tanto que não há um artista do mainstream, gênio do ponto de vista artístico e sucesso no âmbito comercial, cujo ativismo possa ser comparado ao de Nina Simone.
Muita gente talentosa cantou as feridas da escravidão, exaltou histórias do povo negro desprezadas pelos livros escolares e denunciou as diversas encarnações de racismo, porém ninguém praticou a militância com a mesma intensidade com que fazia música.
A impressão é que há uma linha segura, um limite a ser obedecido quando se entra na seara do ativismo social, onde a crítica acontece sem incomodar o establishment.
Foi justamente essa linha que Nina Simone ultrapassou, pagando um preço alto tanto do ponto de vista profissional quanto pessoal.
Alguns nomes brasileiros, a princípio, têm suas obras marcadas por fortes questionamentos sociais, como os Racionais MC’s e o rapper Emicida. Elza Soares abordou a violência contra a mulher no seu último disco, “A Mulher do Fim do Mundo”, e está nesse time.
Mas esses artistas, apesar de consagrados, falam para um público bem específico, afeitos ao ativismo político. No fim, acabam pregando para convertidos.
O silêncio, que pode até ser interpretado como uma forma de acomodação, não acontece apenas em relação à luta pela igualdade racial.
No desastre de Mariana, os caciques da MPB foram bem discretos nas críticas à mineradora Samarco, responsável pela barragem que se rompeu deixando um rastro de lama, poluição e destruição.
A luta pelo direito dos homossexuais também não tem porta-vozes combativos nas primeiras fileiras da MPB, a despeito da grande presença de gays entre os medalhões do mundo artístico. Muitos só assumiram quando se encontraram longe dos holofotes da fama.
Quem tem uma explicação possível para os motivos da inépcia da classe artística brasileira quando o assunto é o combate ao racismo ou outros problemas sociais é a própria Nina Simone.
“Não mudaria o fato de ter participado do movimento dos direitos civis, eu não mudaria isso. Mas algumas canções prejudicaram minha carreira”, disse Simone em uma das entrevistas do documentário sobre a sua vida.
No fim das contas o que comanda é o dinheiro. Se a causa implicar em portas fechadas e contratos cancelados, melhor ficar longe dela, mesmo que o cofre esteja recheado há décadas.