O Conselho Federal de Enfermagem, Autarquia Federal, criado pela Lei Federal nº 5.905/73, órgão responsável pela normatização, disciplinamento e fiscalização do exercício da enfermagem, vem através deste instrumento, com fulcro na deliberação ocorrida na última Reunião Ordinária de Plenária, ocorrida no último dia 06 de Dezembro, na cidade de Fortaleza, Ceará, manifestar sua posição oficial quanto ao Projeto de Lei nº 7703, que dispõe sobre o exercício da medicina.
O projeto que define as prerrogativas da profissão médica merece todo o respeito e apoio por parte do Conselho Federal de Enfermagem, porém não merece prosperar, em nosso entendimento, da maneira como está sob pena de atentar contra a ordem constitucional, na medida que afeta outras profissões regulamentadas por lei.
Vejamos por exemplo a questão contida no Art. 4º, I, que define como ação privativa dos médicos a formulação de diagnóstico nosológico e a respectiva prescrição terapêutica.
Ora, é de conhecimeto geral que o diagnóstico nosológico refere-se ao diagnóstico de sinais e sintomas das doenças, o que significa dizer, que não é admissível que um profissional da área de saúde trate um paciente, de forma segura e digna, sem saber ou mesmo identificar os sinais e sintomas das patologias.
Portanto, todos os profissionais de saúde realizam diagnóstico nosológico e prescrição terapêutica considerando a sua área de competência, sua área de formação e experiência, ou seja, diagnóstico da doença.
Ainda nesta seara, é inconteste na comunidade internacional, o consenso que as causas das doenças, em sua maioria, são multifatoriais, por vezes não totalmente conhecidas, cabendo a cada profissional, dentro de sua formação técnica, identificar conjunto de sinais e sintomas (diagnóstico nosológico) para a minimização da patologia do paciente.
Da forma como está definido o dispositivo, mesmo com a ressalva contida no § 2º do mesmo dispositivo, deixa margem para os Conselhos de Medicina recorrem ao Judiciário para tentar obrigar a população a primeiro obter um diagnóstico nosológico e a respectiva prescrição médica, para depois haver o atendimento por outro profissional. O que não seria nenhuma novidade tendo em vista as inúmeras ações judiciais contra a enfermagem que envolveram o tema prescrição de medicamento e acupuntura há bem pouco tempo.
Algumas questões levantadas aqui são oportunas para ilustrar este contexto, se não vejamos: como ficaria a prescrição para tratamento de feridas? Como ficaria a prescrição do enfermeiro para o tratamento de DSTs, das patologias contempladas na estratégia do AIDPI, das parasitoses intestinais, da Tuberculose, dentre outras, para as quais as evidências dos sinais e sintomas não deixam dúvidas quanto ao diagnóstico e tratamento, e que já encontra-se perfeitamente regulamentado na Lei 7.498/86 e nas portarias emitidas pelo Ministério da Saúde do Brasil como estratégia para melhorar a atenção básica no âmbito do Sistema Único de Saúde.
Em função do exposto, neste ponto específico, no intuito de garantir a autonomia da profissão de enfermagem, sugerimos a alteração da norma do inciso I do Artigo 4º do PL em debate para a seguinte redação: “Art. 4º – São atividades privativas do médico: I- formulação do diagnóstico nosológico médico e respectiva prescrição terapêutica médica”
Cumpre também ressaltar que a lei do “ato médico” não deveria dispor sobre as competências das outras profissões da área de saúde, tal como o faz no § 2° do art. 4° do projeto de lei 7703-B. As profissões regulamentadas já tem sua competências definidas em lei ou, acaso não tenham, deveriam tê-las por lei própria, jamais em uma lei que disponha sobre as funções de outro profissional no caso o “médico”.
No mesmo §2° o projeto de lei foi omisso ao não elencar expressamente como ato não privativo de médico o diagnóstico de enfermagem, cuja essência é completamente diversa do diagnóstico médico. Vejam a gravidade de termos nossas atribuições elencadas em leis de outros profissionais que desconhecem as nossas competências, poderemos considerar esta ausência como esquecimento ou será alguma atitude castradora. Ademais, essas competências dos enfermeiros já estão elencadas na lei 7498/86, a qual dispõe exclusivamente sobre as atribuições dos profissionais de enfermagem, prescrevendo condutas, exigindo determinadas qualificações técnicas
Do mesmo modo que o § 4°, inciso III contém uma excrescência jurídica e mesmo lógica ao dispor que a “invasão dos ofícios naturais do corpo, atingindo órgãos internos” é uma atividade exclusiva do médico. Tão despropositado esse dispositivo normativo que o simples fato de se introduzir um bastão de algodão (conhecidos vulgarmente como cotonetes) no ouvido de uma criança consistiria em ato médico, portanto passível de sanção acaso praticado por qualquer cidadão que não possua diploma de medicina, inclusos os demais profissionais da área de saúde.
Ainda de se ponderar que há um projeto de lei tramitando no congresso nacional que versa sobre o exercício da acupuntura. Nesse passo cumpre salientar que a redação do § 8° do art. 4° que elenca a punção como ato privativo de médico, além de violentar frontalmente o consenso obtido nos debates travados no Senado federal, apresenta ainda inconstitucionalidade flagrante uma vez que injustamente limita o exercício profissional.
A liberdade do exercício profissional consiste em uma garantia fundamental, entendida esta como o meio ou mecanismo assegurador de um dado direito fundamental, no caso o direito fundamental da liberdade. Direito da liberdade consiste em somente ser obrigado a fazer ou deixar de fazer algo em virtude de lei e a garantia fundamental do livre exercício profissional assegura justamente que as profissões regulamentadas somente sofreram as limitações postas na lei.
Considerando que não detém o COFEN, ou qualquer outro conselho profissional legitimidade para a propositura da ação direta de inconstitucionalidade, futuro questionamento judicial acerca da inconstitucionalidade da lei demandará um esforço também político – já que os legitimados para a Ação direta de inconstitucionalidade o são em número reduzido. O questionamento sobre a inconstitucionalidade no controle difuso ainda que possa ser provocado pelos conselhos de fiscalização demanda ordinariamente anos até ser implementado.
Por fim, o projeto é lesivo ao Sistema Único de Saúde ao atentar contra o princípio constitucional da integralidade da assistência e do acesso universal e iqualitário às ações e serviços de saúde para sua promoção, recuperação e proteção. Tais princípios basilares por si só exigem uma abordagem multiprofissional e do trabalho em equipe. Abordagem esta que vem sendo consolidada em todo o mundo no campo do trabalho e na produção do conhecimento e que no Brasil, especificamente na área de saúde, corre o risco de sofrer um retrocesso caso sejá aprovado o projeto de lei do Ato Médico com a redação atual, consolidando reserva de mercado para a categoria médica em detrimento do interesse público.
Brasília, 15 de dezembro de 2009.
Manoel Carlos Néri da Silva
Presidente
Conselho Federal de Enfermagem